De manhã, este bairro tem sono, está ainda bastante adormecido. Até pode parecer ofensivo para os típicos serviços de uma cidade que abrem as portas cedo, como frutarias, cabeleireiros ou farmácias. Mas o resto, quase todas novidades que nos trouxeram até aqui, só funciona a partir da tarde. Até o Mercado de Sapadores, o ponto de partida e de chegada desta reportagem, se mostra moribundo à nossa chegada, e só não escrevemos morto porque havia uma peixaria e um café a funcionar.
Aproveitemos, então, as primeiras horas do dia para apreciar a calma que todos elogiam na Penha de França e para ver como os seus prédios, em bom estado de conservação, não ferem o olhar – raramente ultrapassam os três andares. Nas janelas, aqui e acolá, estão expostos anúncios de imobiliárias. Quer se venda ou se arrende, diz-se que por aqui os valores ainda fazem algum sentido. Daí a população estar a rejuvenescer, a diversificar-se em nacionalidades e profissões – que se tornaram mais artísticas –, e as ruas se encherem de novos negócios.
Life is a Mesh, um estúdio e showroom de tecidos reciclados e bastante originais que fica na Rua da Penha de França, vai agora servir de exemplo para o que ficou escrito em cima. A porta está aberta e a montra convida a entrar, porque as camisas que estão expostas têm bom ar. Constança Bastos, 22 anos, formada em Design de Moda, a viver duas portas ao lado, há de explicar-nos que, além de giras, elas são biodegradáveis e podem ser personalizadas. No entanto, o grosso do negócio, como as encomendas ou os pedidos mais específicos, não se passa aqui, mas no site.
Mais à frente desta enorme rua, que mais parece uma avenida, encontramos o Choco Frrito, um pequeno restaurante que só abre de quinta a domingo e que, por norma, está sempre cheio (só funciona ao almoço, ao sábado e domingo). Por sorte, andamos por aqui numa quinta-feira frrita, assim mesmo com dois erres, insiste o dono, Nuno Mourão, 37 anos, também morador do bairro. E escrevemos “por sorte”, porque assim pudemos bater o pezinho ao som da música escolhida pelo DJ, enquanto nos informávamos acerca deste negócio, com berço na Costa da Caparica. “Era uma barraquinha do tamanho de um Renault 5, na Praia da Saúde”, lembra. Agora, são sete mesas onde só poisam pratos de choco. Além da sua versão frita, à setubalense (daí os dois erres do nome), há sanduíches e croquetes de choco e alguns acompanhamentos. Para beber, Nuno faz cocktails e uma sangria de limão “bestial”.
Não bebemos, porque temos de conduzir esta reportagem sem acidentes. E também não paramos no vizinho Sabor do Nepal, com pratos a preços que não excedem uma nota de cinco. Hão de dizer-nos, pessoas que vivem aqui, que vale a pena, caso se goste de caril e de outras receitas daquele país.
Logo a seguir, ficamos tristes com o único “mamarracho” que encontramos. Se conseguir, desvie o olhar do número 120, mesmo ao lado do salão do reino das Testemunhas de Jeová, para o fixar na Vila Rosário. A reabilitação desta tradicional vila operária resultou em 40 apartamentos, alguns com logradouros, terraços e janelas com vista sobre Lisboa. Tem agora um pátio comum e um ginásio para os habitantes (há várias casas em alojamento local). De fora deste condomínio privado, que existe desde 2018, abriu em setembro a Nebulosa, que se descreve a si própria, na página do Facebook, como “uma homenagem aos melhores produtos e produtores, com um conceito local que transforma a oferta mundial numa experiência de degustação única”.
Está na hora de bebermos um café, e escolhemos fazê-lo no Copacabana. Assumimos que o nome nos seduziu, mas as parecenças com o bairro carioca acabam aí. No entanto, não desdenhamos da Praça António Sardinha, para onde estamos virados, pois a arquitetura dos seus prédios encanta e o som das crianças que brincam no parque infantil dão laivos da normalidade de que precisamos nestes dias de regresso à rotina. Continuemos a descobrir o bairro – o dia está frouxo e ainda somos apanhados pela chuva.
Passamos pela Luísa de Gusmão, a Secundária ainda vazia de jovens, e chegamos ao largo da junta de freguesia, com vista para o Lagarto da Pena, enorme mural emblemático, da autoria de Leonor Brilha. Mais à frente, fica a Vila Saraiva, esta sem qualquer tipo de recuperação ou portão que impeça a passagem. Entremos, nem que seja para ver a vista que pouco se distingue da que nos dá o Miradouro da Penha de França, uns metros mais acima.
Havemos de reparar que bem está instalada a Direção Nacional da PSP, num convento do século XVII, mesmo ao lado da igreja barroca da Nossa Senhora da Penha de França. Por trás do miradouro, fica a torre da tomada de água, bastante grafitada. Sentemo-nos antes num dos dois bancos disponíveis, de olhos postos neste lado menos postal da cidade, aproveitando a sombra das oliveiras.
Continuando a deambular pelo bairro, num sobe-e-desce constante que já não assusta ciclistas, encontramos outra antiga vila, toda bonitinha, em tons de amarelo, uma associação de fotografia experimental, um ponto de recolha de comida encomendada no site Welcome Food, o cowork La Ventana e uma moderníssima escola de programação, que se instalou aqui desde o ano letivo passado.
À hora do almoço, a experiência torna-se virtual. Entramos na cave com porta para a rua e que serve de casa ao Food Riders, um coletivo gastronómico que abre e fecha cozinhas ao sabor dos gostos do mercado. Neste momento, só funciona aqui o Las Gringas (com o know-how do extinto Pistola y Corazón da Rua da Boavista), mas já houve oferta do Ameaça Vegetal, a versão vegetariana do chefe Diogo Noronha.
“Não somos só digital, também fomentamos o cara a cara”, explicam-nos mal fazemos o pedido. Enquanto aguardamos pelos totopos para molhar no pico de gallo e pela gringa de champiñones, bebemos um chá infusionado com líchias e ouvimos o vinil que toca ao nosso lado e que foi retirado da analogic jukebox. A espera não ultrapassa os dez minutos, mas dá-nos tempo para deitar um olho ao corner shop, com produtos mexicanos e japoneses. Não tarda, dizem-nos, haverá mais vida nestas prateleiras.
Com a gringa na mão, descemos a rua até à Morais Soares (sim, a freguesia vem até aqui), enquanto damos dentadas no petisco mexicano. Do outro lado da avenida, está agora A Avó Veio Trabalhar. Saiu há um ano da Rua do Poço dos Negros, porque as instalações já eram pequenas para a dimensão deste projeto de empreendedorismo social que quer manter ativas as pessoas mais velhas, através da prática de manualidades. A mudança de bairro não foi fácil nem consensual. Em Santos, havia mais vida além do atelier, agora o convívio encolheu – a culpa também se atribui à pandemia.
O Clube Lusitano da Penha de França foi fundado em 1953, mas nos últimos anos estava a precisar de reanimação. Foi para isso que, em 2020, apareceram as amigas Inês e Catarina, de 28 anos, que escolheram esta zona também para viver. Não estão sozinhas, claro, e a equipa é toda jovem, pronta para imprimir um bom espírito a este espaço desafogado que tem recantos encantadores, à la Conta-me Como Foi. Aqui, às quintas, sextas e sábados, promete-se uma boa e diversificada programação que passa por concertos, cinema, peças de teatro ou refeições temáticas, tudo divulgado atempadamente nas redes sociais. A cave, onde são os espetáculos, também pode ser alugada para festas. Para acompanhar, há jolas a um euro e petiscos variados que saem da imaginação destas amigas, que vieram de pequenas aldeias onde o associativismo sempre foi forte.
Desde há três anos que no bairro também há cooperativismo, graças ao Penha SCO, um coletivo de artistas que se instalou numa antiga fábrica de tecido, sem apoio nenhum. Antes da pandemia, conseguia sobreviver apenas da programação que abria à comunidade, a troco de uma entrada e de bebidas e petiscos vendidos no bar. Agora, tiveram de desenvolver três projetos, um envolvendo crianças, outro destinado a idosos e ainda outro virado para a saúde mental, para a Câmara Municipal de Lisboa. Lá em baixo, está a decorrer um ensaio à porta fechada, mas normalmente essa área está destinada a concertos, às quartas, pelas sete da tarde. Depois, há programação eventual, baseada essencialmente em artes visuais, música e performances, comunicada nos sítios do costume. Nesses dias, é o Tati que serve a comida e a bebida.
O café alternativo, que fez história junto ao Largo de São Paulo, no Cais do Sodré, trocou a zona notívaga da cidade por este bairro mais familiar, há cerca de um ano. Aqui, a enorme esplanada enche-se num ápice, depois das cinco da tarde, para os petiscos de mercado e vinhos naturais.
Não muito longe, a pequena esplanada do Flor de Lúpulo ainda está vazia àquela hora, mas as oito torneiras de cerveja artesanal estão prontas para encher os copos dos clientes habituais, quase todos a viver nas redondezas e muito contentes com este upgrade pós-Covid (dantes, este bar só tinha interior – e pequeno). Aliás, por toda a Penha de França, à semelhança do resto da cidade, veem-se esplanadas recentes, com ar convidativo, montadas em cima de estrados de madeira, roubando lugares aos carros.
Mas o melhor poiso da Penha, atrevemo-nos a dizer, é o ainda pouco conhecido Miradouro do Monte Agudo. Fica paredes-meias com a rede que limita a Luísa de Gusmão e tem um ocaso especial, quando o Sol se põe por trás da colina de Monsanto, mesmo à nossa frente. E isso pode ser celebrado com cervejas e copos de vinho que se pedem no quiosque ou se trazem de casa.
Cai a noite. A agitação já se sente pelas ruas. Decidimos que o jantar deveria ser naquele que é considerado “o melhor restaurante do bairro” que, por sinal, está sempre cheio de vizinhos. Falamos do A’Paranza, uma tasca que serve comida do Sul de Itália, à base de peixe e marisco. Quem imaginava que acabaríamos a comer um cone de lulas, camarões e petingas fritas, saídos das mãos mágicas do cozinheiro Gianluca di Nicuolo?
É por isso que temos de digerir, bebendo um copo no The Good Place, a novidade mais recente do Mercado de Sapadores que, a esta hora, já tem bastante mais gente e vários restaurantes abertos. Apesar de a música estar alta, a confortável esplanada chama por nós. Às sextas, há sempre um DJ, mas Gustavo Amaro, 30 anos, quer diversificar a oferta com cinema ao ar livre, por exemplo. “O ambiente aqui é descontraído. Estamos numa zona que está a crescer e que tem imenso potencial.” Depois de um dia por estas bandas, tendemos a concordar a 100 por cento.
MAPA DE MORADAS
VER
Miradouro da Penha de França R. Marques da Silva
Miradouro Monte Agudo R. Heliodoro Salgado > tem um quiosque que abre das 13h ao pôr do Sol
COMER
Food Riders Coletivo gastronómico virtual. Cç. do Poço dos Mouros, 28 > foodriders.co
The Good Place Bar e restaurante no renovado Mercado de Sapadores. R. da Penha de França > T. 91 219 0562 > ter-qui dom 17h-24h sex-sáb 17h-2h
Choco Frrito Restaurante especializado em choco frito. R. da Penha de França, 116C > T. 93 806 9004 > qui-sex 17h-23h sáb-dom 12h-15h 19h-23h > quintas-feiras frritas com DJ
A’Paranza Restaurante com comida típica do Sul de Itália. R. Heliodoro Salgado, 8 > T. 21 246 6202 > seg-sáb 19h-23h
Tati Café de petiscos e vinho, que antes estava no Cais do Sodré. R. Carrilho Videira, 20B > T. 21 814 2467 > qua-dom 17h-24h
Flor de Lúpulo Bar de cerveja artesanal. R. Heróis de Quionga, 66 > T. 96 875 2132 > seg-qui 16h-22h30 sex-sáb 16h-01h
ARTES
Clube Lusitano da Penha de França Associação recreativa com programação cultural. R. Padre Sena de Freitas, 22A > lusitanopdf.pt
Quiosque Dom Fruto Pç. Paiva Couceiro > Há Jazz na Praça, sex 19h > gratuito
Penha SCO Cooperativa de artistas que se abre à comunidade através de espetáculos. R. Neves Ferreira, 10B > T. 91 287 2999 > penhasco.online/pt
COMPRAR
Life is a Mesh Showroom de tecidos reciclados e artigos de design. R. da Penha de França, 110B > lifeisamesh.com
A Avó veio Trabalhar Atelier criativo intergeracional. Lg. Mendonça e Costa, 10 > T. 93 624 3762 > seg-sex 10h-18h