No concerto desta quinta-feira, 16, o primeiro do ciclo Boca do Lobo, o mundo clássico vira-se do avesso: não há folha de sala, formalismo nas roupas dos músicos, silêncio entre andamentos, lugares marcados nem sequer sentados. E, valha-nos deus, até podemos ir ao bar, enquanto os artistas se exprimem na sala do primeiro piso do Lux Frágil. Mas o respeito pela música clássica, esse, mantém-se intacto, ou não fosse a curadoria do maestro Martim Sousa Tavares, 28 anos, responsável pela Orquestra Sem Fronteiras.
Por mais estranho que pareça, a ideia inusitada de levar este tipo de música para um sítio onde se ouve, normalmente, a sua versão eletrónica surgiu num sofá e por causa de um ecrã de televisão. O programador Pedro Fradique, um dos atuais responsáveis pelo Lux, ouviu Martim no programa Querido Diário (canal Q) e rendeu-se ao discurso. Não tardou muito até desafiá-lo a pôr em prática o seu pensamento disruptivo. E pouco depois, o maestro apareceu-lhe com o ciclo Boca do Lobo todo planeado, sem constrangimentos ou medo de arriscar.
“Sentia-me muito frustrado pelo facto de a música clássica estar fechada no seu statu quo. Tenho vários amigos artistas que intervêm através das suas formas de arte e eu dificilmente conseguia fazê-lo”, lamenta-se, para explicar em que ponto estava antes de aparecer esta oportunidade. O nome escolhido para a sua utopia faz todo o sentido: “Trata-se de uma pilha de lenha para me queimar; sei bem que não deveria estar ali, que está tudo errado.” Mas, na realidade, Martim só quer um concerto mais fluido, sem provocações às salas tradicionais.
O ciclo dura até junho, com sessões temáticas todos os meses, sempre à quinta-feira. Neste dia 16, a estreia, pede-se que pensemos nas migrações de várias formas. Desde logo, através de Winterreise (Viagem de Inverno), um ciclo de canções para voz e piano, escritas há dois séculos por Schubert, quando estava à beira da morte. A partir de um longo poema de Wilhelm Müller, relata-se, na primeira pessoa, a errância de uma viagem que não corre lá muito bem.
No Lux, o texto não será cantado por um barítono de fraque, como é costume nas salas pomposas por esse mundo fora, mas por Martin Mkhize, um emigrante da África do Sul, fixado agora na Holanda. Para o acompanhar ao piano, Martim escolheu Mirka Sefa, uma fugitiva da guerra do Kosovo que acabou sediada na Suíça. Fidel Évora, artista cabo-verdiano radicado na Europa, estará a desenhar ao vivo (as suas obras do live painting serão vendidas e a receita doada ao Projeto LAR, de apoio aos refugiados).
E se as migrações são feitas de escolhas conscientes, o espectador também terá de optar entre ver os músicos ou as imagens a ganharem forma – nunca será possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo, ainda que a música se oiça em qualquer lado da sala.
André Carrilho assina a ilustração deste primeiro concerto (e outra que simboliza todo o ciclo). Os próximos cinco temas do Boca do Lobo (representação da mulher, ecologia, ocultismo, identidade de género, ilha de Lesbos) terão outros traços igualmente irreverentes. Um adjetivo a condizer com o historial do Lux e com esta forma de olhar para a música clássica.
Lux > Av. Infante D. Henrique, Armazém A, Cais da Pedra a Sta. Apolónia, Lisboa > T. 21 882 0890 > 16 jan, qui 22h > €12 > próximas edições: 20 de fevereiro, 19 de março, 16 de abril, 21 de maio, 18 de junho