Bom caminho!” Até chegar a Santiago de Compostela, um peregrino perderá a conta às vezes em que ouviu esta frase. Simples, mas com um poder regenerador, a incutir forças no passo cansado. Na freguesia rural de Carreço, Viana do Castelo, aparece a octogenária D. Rosa a acenar aos forasteiros que todos os dias lhe passam à porta, de mochila às costas, botas sujas de pó e cajado nas mãos. “Se fosse mais nova, abria um café”, diz, um pouco embaraçada com a atenção dos jornalistas. Estamos no Caminho Português da Costa (CPC), no mesmo traçado do caminho real que ligava o Norte de Portugal à Galiza (por sua vez, herdeiro das vias romanas), ainda repleto de capelas, cruzeiros e alminhas a atestar a ligação espiritual. “Estas localidades mais pequenas eram lugares esquecidos, por isso a população vê com alegria a passagem dos peregrinos”, afirma Nuno Barbosa, da Viv’Experiência, uma das empresas de animação e promoção turística que viu na revitalização desta rota uma oportunidade de combater a sazonalidade do turismo. É ele que nos acompanha à saída da capital do Alto Minho, entre antigas propriedades, algumas abandonadas, de paredes cobertas pelo verde voraz e, para lá dos muros altos, o azul do mar à espreita.
Antes, desviámo-nos ligeiramente do percurso para apanhar o funicular que conduz até à Basílica de Santa Luzia, templo construído entre 1903 e 1943, inspirado no parisiense Sacré Coeur. Para se ter a melhor perspetiva, há que subir os 158 degraus até ao zimbório. “Daqui consegue ver-se, na outra margem do rio Lima, o traçado quase retilíneo, cristalizado desde a época romana”, aponta Miguel Costa, arqueólogo do município de Viana do Castelo. O olhar é conduzido, de seguida, pela travessia da Ponte Eiffel, pelas intrincadas ruas medievais do centro histórico, com imenso património para descobrir, e prossegue então pela meia encosta do Monte de Santa Luzia. “É um percurso mais nivelado e resguardado do sol e do vento”, explica Miguel. Foi uma equipa de técnicos como ele que, há dez anos, começou por redescobrir o CPC. Inicialmente, fazendo quase em segredo a pesquisa de elementos históricos, topográficos e arquitetónicos que fundamentassem um traçado caído no esquecimento. Mais tarde, já com o envolvimento dos executivos camarários do Norte Litoral, avançou-se com a candidatura ao Norte 20.20, aprovada em 2017, contando com cerca de dois milhões de euros para a valorização e a promoção do caminho. “Tivemos de procurar o rigor histórico, porque fomos muito questionados”, revela Aurora Viães, vereadora do município de Vila Nova de Cerveira, um dos envolvidos no projeto, além de Porto, Matosinhos, Maia, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Esposende, Viana do Castelo, Caminha e Valença.
No rasto do túmulo
As peregrinações compostelanas iniciam-se com a descoberta, no princípio do século VIII, do túmulo do Apóstolo Santiago em Arcis Marmoricis, atual Santiago de Compostela. Um achado decisivo para a consolidação do movimento de resistência e reconquista cristã. Rapidamente, a cidade transforma-se, neste período, num dos mais importantes e concorridos centros peregrinatórios da cristandade. Para regrar a multiplicidade de acessos (e também por razões de ordem política e económica), definiram-se com o tempo oito caminhos oficiais. A partir do século XV, o CPC ganha importância, uma vez que começa a ser utilizado pelas novas populações que se fixaram na zona costeira e pelos que desembarcavam nos portos marítimos. As pesquisas revelaram a abundância de registos nos hospitais e Misericórdias que se fixaram na rota ao túmulo do Apóstolo Santiago, para prestar assistência e acolhimento a quem passava. Assim como as histórias das barcas de passagem, também chamadas “barcas por Deus”, para fazer a travessia de rios. Curiosamente, terá sido uma réplica medieval da Barca do Lago, em Fonte Boa, Esposende, uma das primeiras ações de promoção deste caminho.
Um projeto que, falhada a inclusão nos apoios públicos, avançou por iniciativa privada, com uma empresa de desportos náuticos, a Proriver, a fazer a travessia do rio Cávado desde maio de 2017 (gratuita para quem mostrar a credencial, uma espécie de “passaporte” que atesta do cumprimento das várias etapas). Belmiro Penetra, 45 anos, antigo canoísta, não é um homem religioso, mas assegura que a peregrinação a Santiago foi uma das experiências mais marcantes da sua vida, superior até à presença em dois Jogos Olímpicos. Fez parte do caminho em canoa, depois a pé, e é com emoção que recorda o sentimento de partilha entre peregrinos. Grato a quem o ajudou, a troco de nada, quer agora dar o seu contributo. E é vê-lo aos comandos da embarcação, com música celta a tocar e Pitbull, o pequeno cão rafeiro, como animador de serviço.
Um pé na terra, outro no mar
Diz-se que todo o caminho escolhido por um peregrino, desde o seu local de origem até ao túmulo do Apóstolo, é um caminho de Santiago. Em Esposende, há quem prefira ignorar o itinerário mais antigo e seguir perto da costa, atravessando propriedades agrícolas, os núcleos populacionais da Apúlia e de Fão, a ponte metálica sobre o rio Cávado e, depois, o centro histórico de Esposende. Entre as masseiras cultivadas, a mancha florestal e os campos de flores primaveris da Apúlia, aparece Anna, alemã de 36 anos, caminhante experiente, habituada a viajar sozinha com a sua mochila (como fez recentemente no Irão). Da nossa costa atlântica, adorou “o contacto com a Natureza”. Ouviu falar do caminho noutra passagem por Portugal, investigou e fez-se à estrada. “É muito bom, porque estás longe dos problemas e tens tempo para pensar, por isso é sempre uma jornada espiritual”, diz.
Uns quilómetros mais à frente, prestes a enveredar pelas ruas de Esposende, a italiana Rafaela, de 62 anos, descreve com uma única palavra a experiência: “Paz.” Esta é a sua 11ª peregrinação a Santiago. “Não sei porquê, mas respiro, relaxo, canto muito… e fico bem. Quando chego a Santiago, parece que cheguei a casa”, descreve. Já tinha feito por duas vezes o caminho central português, esta é a primeira no da costa, com “uma paisagem maravilhosa, bons albergues e pessoas disponíveis para ajudar”. Para José Costa, técnico da Câmara Municipal de Esposende, “esta é uma peregrinação de cabeça levantada, com um misto de motivações. A questão religiosa existe, mas tem mais peso a descoberta, a aventura, a vontade de contactar com outras pessoas.” No CPC, fazem-no com um pé na terra e outro no mar, associando à experiência um património histórico e cultural riquíssimo.
Com a aposta na nova sinalética ao longo dos dez municípios do Norte Litoral e a promoção à altura, o CPC cresceu 64% entre 2016 e 2017 (no ano passado, contabilizaram-se 7 329 visitantes), segundo os dados oficiais da Oficina do Peregrino. “É um dos que mais têm crescido. Aos poucos, os municípios criaram condições para acolher os peregrinos, embora ainda haja muito por fazer”, testemunha Nuno Barbosa, da Viv’Experiência. Além das empresas de animação turística, há outras iniciativas privadas a aproveitar o maior afluxo, como restaurantes e hotéis a anunciar preços especiais. É o caso do Hotel Meira, um histórico de Vila Praia de Âncora, cujas diárias têm já entre 30% e 40% de peregrinos. O verdadeiro descanso do “guerreiro”, no final de cada etapa.
Um desvio até Cerveira
No dia seguinte, partindo do casco urbano de Vila Praia de Âncora, a caminhada levará a um dos mais belos troços do CPC, um dos poucos que são, efetivamente, junto à orla costeira. Desde a foz do rio Neiva, estendem-se formações rochosas com mais de 500 milhões de anos e avistam-se as pias salineiras utilizadas na Antiguidade para recolha do sal marinho.
A partir da Capela de Santo Isidoro, anterior ao séc. XVII – com o seu invulgar púlpito exterior e um alpendre que servia de abrigo aos peregrinos de Santiago –, segue-se o mesmo traçado da Ecovia do Litoral Norte, com o Forte da Ínsua
e o areal de Moledo no horizonte.
Por lá encontramos o polaco Michael Czuprynsk, de 22 anos, movido pela fé e absolutamente focado na cadência do passo. Há, no entanto, quem admita um ou outro desvio ao percurso. Já falámos na Basílica de Santa Luzia, mas até chegarmos à fronteira com o país vizinho ainda tivemos outras derivas. Uma das mais agradáveis foi o cruzeiro no rio Minho, entre as ilhas da Boega e dos Amores. Fizemo-lo a pretexto do desdobramento do caminho em Vila Nova de Cerveira, uma vez que ali existem duas opções: ora atravessa para Espanha (embora haja por lá pouca sinalização), de barco ou pela Ponte da Amizade, ora avança até Valença em território português (a mais escolhida). Pertencente à Rede Natura 2000, o estuário do Minho é uma zona especial de proteção de aves, e as suas ilhas inabitadas, de propriedade privada, com zonas pantanosas, densa vegetação, lagoas e canais, são um refúgio da vida selvagem. Do lado espanhol, avista-se o Monte de Santa Tecla, o ponto mais a sul da Galiza e um dos mais visitados da região.
No centro histórico de Cerveira, há outros motivos de interesse. Dentro do castelo, aguarda-nos D. Laura, para nos abrir as portas da Igreja da Misericórdia, de 1811, conhecida pelo altar com a imagem do Senhor Ecce-Homo e pelo cofre das Sete Chaves, assim como da Capela de Nossa Senhora da Ajuda (apelidada de “vaidosa”, pelo cabelo loiro), de 1650, com os tetos cobertos de referências à padroeira e as paredes, de azulejos. Fora de muralhas, refira-se ainda a igreja matriz, com altar-mor de talha dourada, a revelar ser esta “uma terra de fronteira, ao reunir arte sacra portuguesa e espanhola, a segunda com expressões mais duras e carregadas”, observa Paula Ramalho, arqueóloga do município de Cerveira. É também ela que nos conduz, ao almoço, ao Paço do Outeiral, mansão senhorial do século XVII, em Gondarém, mais conhecido como Hotel Boega desde a década de 70 do século XX. Numa das suas portas, virada para o caminho, guarda a inscrição como “casa de obrigação para passageiros, peregrinos e mendigos que nela quiserem dormir”.
Valença é o ponto de confluência entre os dois caminhos portugueses, o central e o da costa. Após atravessar a ponte metálica sobre o rio Minho, seguem-se as mesmas setas amarelas
até Santiago de Compostela. Um percurso feito pelos nova-iorquinos Kevin e Liam Gaugler,
45 e 12 anos, pai e filho. Encontramo-los na Praça do Obradoiro, a mais importante da capital galega, com a catedral de Santiago de Compostela e outros edifícios emblemáticos, como o Paço de Raxoi (a sede do Governo galego e do município compostelano), o Hospital dos Reis Católicos (transformado em parador cinco estrelas) e o Colégio de São Jerónimo. Liam toma as rédeas da conversa e fala das pessoas que conheceu ao longo do caminho. Isso e o dinheiro arrecadado na aposta feita com o grupo, brinca: “Um euro por cada prato novo.” “Comi polvo, mexilhão, peixe… Era tudo muito bom”, conta. O pai, professor de espanhol, sempre quis fazer a peregrinação a Santiago e a rota portuguesa ajustava-se aos seis dias disponíveis. “Chegámos ao fim e fizemos amigos para a vida”, diz.
Um dia, regressará ao caminho.
ONDE DORMIR:
Albergue de Peregrinos do Porto > R. do Barão de Forrester, 954, Porto > T. 91 259 1321 > 26 lugares > €10
Albergue de São Miguel de Marinhas > Av. de São Sebastião, Marinhas, Esposende > T. 253 964 720 > aceita donativos
Hostel Eleven > R. Narciso Ferreira, 57, Esposende > T. 253 039 303 > €16 a €45
Hotel Meira
No centro de Vila Praia de Âncora, o hotel familiar, com 83 anos, viu as remodelações terminadas no final de 2017. Tem 52 quartos, restaurante, piscina exterior e terraços panorâmicos. R. 5 de Outubro, 56, Vila Praia de Âncora > T. 258 911 111 > €78 (quarto duplo), €50 (peregrino com credencial), menu peregrino, €16
Albergue São João da Cruz dos Caminhos > Igreja do Carmo, Viana do Castelo > T. 258 822 264 > 32 lugares > €6 a €15
Albergue de Santa Luzia > Monte de Santa Luzia, Viana do Castelo > T. 258 823 173 > €15
Albergue
Casa do Sardão
A sete quilómetros a norte de Viana do Castelo, o albergue privado, aberto há cerca de dois anos, aproveitou a localização da casa senhorial, em pleno Caminho da Costa. As
20 camas estão distribuídas por duas camaratas e há áreas comuns e jardins simpáticos. Av. de Paço, 769, Carreço, Viana do Castelo > T. 96 179 0759 > €12
FeelViana
Escondido entre o pinhal do Cabedelo, com acesso direto à praia, o hotel vocacionado para o turismo ativo e de bem-estar divide-se entre o edifício principal e os bungalows, ambos revestidos a madeira. No sports center aluga-se equipamento para a prática de BTT, stand up paddle, surf, bodyboard, vela, running e trekking. Há instrutores para todas as modalidades. R. Brás de Abreu, 222, Praia do Cabedelo, Viana do Castelo > T. 258 330 330 > a partir de €104 (duplos) e de €139 (bungalow)
Pousada da Juventude de Vila Nova de Cerveira > R. Alto das Veigas, EN 13, Vila Nova de Cerveira > T. 251 709 933 > a partir de €14,25
Hotel Boega
Além da mansão senhorial do séc. XVII, rodeada de belos jardins com vista para o rio Minho, o hotel dispõe de quartos mais modernos. O restaurante O Peregrino, de cozinha tradicional portuguesa, é aberto a não hóspedes, mas convém fazer reserva. Há um ritual do toque da sineta, sempre que é servido um novo prato do buffet. Quinta do Outeiral, Gondarém, Vila Nova de Cerveira > T. 251 700 500 > a partir de €75, €50 (peregrino com credencial)
ONDE COMER:
Água Pé
Instalado num antigo lagar, o restaurante de arquitetura moderna, com dez anos de existência, próximo do centro histórico de Esposende, ficou conhecido pelas especialidades do mar. Av. Dr. Henrique Barros Lima, 6, Esposende >
T. 253 968 519
Tasquinha da Linda
As instalações remodeladas guardam pouco
do modesto armazém de pesca, mas Deolinda Ferreira, a cozinheira e proprietária, mantém-se fiel
às especialidades de sempre:
as abundantes cataplanas, o arroz de lavagante,
a massada de peixe ou os mistos de marisco. R. dos Mareantes, 10A, Doca das Marés, Viana do Castelo > T. 258 847 900/96 301 2360 > seg-sáb 12h-15h, 19h-23h
Maria Castaña
Próxima da Catedral, a casa com o nome da heroína local do séc. XI abriu em 1999, com Xan Galbán à frente da cozinha. Tem barra para tapear e mesas distribuídas por diferentes salas, servindo a comida tradicional galega, como o marisco, o polvo à feira e o caldo galego, além de propostas mais inovadoras. R. da Raiña, 19, Compostela >
T. +34 98 156 0137
O QUE FAZER:
Cruzeiro das Ilhas
Percurso fluvial de cerca de uma hora feito no estuário do rio Minho, entre as ilhas da Boega e dos Amores, pela empresa Olá Vida. Parque do Castelinho, Vila Nova de Cerveira > T. 96 499 4420 > jul-ago, seg-dom 11h30-15h30 > €15 (inclui entrada no Aquamuseu), mínimo duas pessoas, €4 por peregrino
Casa Sandra
Loja de artesanato, especializada no bordado de Viana (com a devida certificação), mas com outros produtos regionais como os trajes típicos, a loiça e os lenços dos namorados. Lg. João Tomás
da Costa, 44,
Viana do Castelo
> T. 258 822 155
> seg-dom 9h30-
-12h30, 14h30-19h
A VISÃO viajou a convite do Caminho Português da Costa