Sofia Afonso
As coisas têm a importância que têm e, por isso, as conversas calham como calham. E muitas vezes calham na medida do vinho que levam – como aconteceu, no último fim de semana, entre os dias 4 e 6, durante os quais um feliz acaso (vamos chamar-lhe assim, para encurtar razões) juntou, em Viseu, a realização da iniciativa Vinhos de Inverno à primeira edição do festival literário Tinto no Branco.
A propósito de um mote aquiliano sobre o centralismo lisboeta (“Se regionalista é ter descrito outra coisa que não Lisboa, não reclamo melhor diploma”), houve quem dissesse que “passamos do universal ao regional com um copo de vinho” (Manuel da Silva Ramos, escritor) e assim, de alguma maneira, esvaziasse a questão que deu mote ao debate. Ou quem suspeitasse de um povo que não gosta de vinho (Fernando Dacosta, jornalista e escritor, citando um dos grandes, Jorge de Sena). Ou ainda quem confessasse ter em casa um louceiro onde arruma um Barca Velha de 1961 ao pé de um romance de Milan Kundera (Luís Costa, jornalista da RTP e antigo editor da revista Wine).
Como alguém dizia em Viseu, o leitor “vá bebendo, para isto não ser só paleio”. Tudo esteve à prova no Solar do Vinho do Dão, antigo paço episcopal, muito bem preservado, já foi cadeia e quartel, e hoje parece ser o lugar ideal para a realização de acontecimentos improváveis como este Vinhos de Inverno (organização da câmara municipal) e Tinto no Branco (produção da Booktailors). Estiveram à prova os vinhos de vários produtores do Dão, sob o olhar de uma frase mortífera de Aquilino Ribeiro, natural de Sernancelhe, Carregal do Sal, distrito de Viseu: “O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos.” Também se saborearam alguns enchidos, queijos e doces da região, que o vinho é para ir sendo acompanhado, pois claro.
Além dos prazeres do estômago, testou-se também a literatura – pela mão de escritores como Francisco José Viegas e Paulo Moreiras, conhecidos apreciadores da boa mesa, ou como Bruno Vieira Amaral, Rui Cardoso Martins, Patrícia Reis e Valério Romão, a quem não se lhe conhecem atributos gastronómicos (o que não quer dizer que não os tenham, como bem se viu em Viseu). A partir do livro Pão e Vinho, Paulo Moreiras contou histórias, lendas e facécias. Na mesma sala, à lareira, tentou-se a sorte em jogos com perguntas sobre o “ciclo da vinha” e um blind date sobre princípios de romances célebres. Tente o leitor também: “Todas as famílias felizes são iguais; as infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Acertou? Boa, não era difícil, pois não?
Durante a tarde, num ateliê de artes plásticas para crianças, Paulo Galindro, ilustrador de livros como O Cuquedo e O Tubarão na Banheira, ensinou a pintar com aguarelas feitas a partir de reduções de vinho. E depois, à meia-noite, os adultos brincaram ao quarto escuro na adega. O que, num festival literário, significa que ouviram dizer poesia. Pelas vozes de António Gil, Núria Madruga (que bela voz sussurrada que Núria tem) e Renato Filipe Cardoso, “explorámos os sentidos sem o apoio da visão” e, pelo meio, até um copo se partiu. Depois disso, numa tenda montada no relvado do solar viseense, o dj Irmão Lúcia (Pedro Vieira, também ilustrador, também escritor) ainda nos deu música madrugada fora. Por esta hora está o leitor a pensar que nada disto tem a ver com nada. É bem capaz, mas aconteceu. E agora que o paleio acabou, foi bebendo enquanto lia esta crónica? Valha-nos isso.