1. Despedidas Impossíveis
Han Kang
Vencedora do Nobel da Literatura em 2024, Han Kang usa como ferramentas as atmosferas um-pouco-fora-deste-mundo, idioma lírico e uma voz ilusoriamente suave para explorar perdas, traumas, violência – com muitos destes submergidos na História sul-coreana. Neste romance premiado com o Médicis, e com sombras autobiográficas, há uma náufraga a debater-se com fantasmas: Kyungha afundou-se num “pântano”, numa “floresta negra” de pesadelos na neve e cenas de tortura. Suicida adiada, tem escrito um “testamento final” a tinta permanente: “Há pessoas que brandem a sua arma mais afiada no momento em que se vão embora. Sabemo-lo por experiência própria. Fazem-no para cortar a parte mais macia da pessoa que vão deixar com a precisão que a proximidade lhes dá”, lemos. Mas… a amiga de infância, Inseon, está hospitalizada, os dedos decepados num acidente, e pede-lhe ajuda para tratar do seu periquito branco em Jeju, ilha marcada pelo trauma de um massacre ordenado pelas autoridades para castigar desleais ao regime – onde Inseon e Kyungha planearam criar um cemitério-memorial de troncos de árvore cortados. E ela inicia uma peregrinação por entre ossos, recortes de jornais e sonhos, sob a neve – protetora ou ameaçadora? Han Kang nunca permite redenções certas, mas o leitor, fascinado, acompanha-a até ao fim. D. Quixote, 352 págs., €19,90
2. Dobra
Adília Lopes
Dois meses antes da sua partida, no final de 2024, a poeta ganhara esta reedição da Poesia Reunida, tomo que está agora a ser reimpresso com emendas relacionadas com grafismo, deixadas pela sua mão. Sempre ao arrepio de tendências literárias, Adília Lopes fazia dançar na página influências eruditas, gatos, antidepressivos, Condessa de Ségur, jogos de linguagem, humores, alfinetadas, Deus, o corredor da sua casa… Isto é: o sublime sem palavras pomposas, puerilidade sem embaraços. Contabilidade feita, arrumam-se aqui 36 livros de poemas, alguns fininhos e acutilantes como facas, outros correndo ligeiros como rimas infantis. Assim se pode regressar sempre a esta autora singularíssima. Assírio & Alvim, 1 056 págs., €44
3. Beautyland – Terra Bela
Marie-Helene Bertino
“Dois acontecimentos celestialmente significativos que ocorrem em simultâneo: a partida da Voyager 1 e a chegada de Adina Giorno, precoce, enrugada e amarela como um jornal velho.” Isto é, duas sondas disparam em direções diferentes. É que Adina é uma extraterrestre, do “Planeta Arroz de Grilo”, que comunica por fax com a sua espécie, relatando a estranheza da experiência humana enquanto filha de mãe solteira numa Filadélfia de mitos culturais e sonhos desfeitos. Se a premissa arrisca ser fantasiosa e fora da caixa, a escrita em saltos quânticos e a atenção ao detalhe de Bertino transformam este romance numa experiência inusitada e comovente. Topseller, 304 págs., €18,45
4. Um Sopro de Vida
Clarice Lispector
Janeiro inaugura um regresso da sibila da literatura brasileira, de quem a Companhia das Letras vai reeditar a obra toda, com quatro romances nas livrarias a partir de dia 20: A Paixão Segundo G.H., Água Viva, Perto do Coração Selvagem e este Um Sopro de Vida, apresentado por Susana Moreira Marques. Último livro de Clarice Lispector, publicado postumamente, é um objeto raro, fluido, fragmentário, trabalhado com minúcia de laboratório e argúcia testamentária nos seus últimos anos de vida. Lispetor é a marionetista que posiciona, aqui, um autor e a sua personagem, Ângela Pralini, cada um com o seu diário – e a criatura sobrepor-se-à ao criador. Este jogo de espelhos serve à sedutora e audaz escritora para refletir sobre o sentido da vida e da criação, o significado do fracasso, a decisão de escrever ou não escrever – um “grito de ave de rapina”: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.” Companhia das Letras, 192 págs., €16,65
5. O Meu Marido
Maud Ventura
Há nomes intocáveis construídos por romances dedicados às complexidades de protagonistas femininas que desarrumam o guião. Como o de Gillian Flynn, autora de Em Parte Incerta, muito evocada a propósito da jovem francesa-sensação que ambiciona ocupar esse panteão com um thriller emparedado na domesticidade de um casal aparentemente abençoado com tudo. Ela, uma apaixonada que não descambou no afeto terno da maturidade, sente “arrepios de orgulho” ao pronunciar as palavras “o meu marido”, criatura que lhe “pertence”, diz. Vive na “infelicidade permanente e paradoxal de ser amada também”, e revê-se na frase de Duras: “Nunca fiz outra coisa senão esperar diante da porta fechada.” Mas, num caderno escondido, regista as beliscaduras todas, reais ou não, do cônjuge. A escrita ritmada, a claustrofobia emocional, a submissão feminina a tingir-se de negrume, complicarão este happy ever after… Cultura Editora, 224 págs., €18,50
6. Rombo
Esther Kinsky
O ponto de partida deste romance com impacto tectónico foi uma notícia: a terra tremeu no vale de Friuli, Itália, em 1976, tudo destruindo: “Os relógios nas torres das igrejas detêm-se (…), serpentes pretas escapam-se para o rio”, o apocalipse escuro desaba-lhes debaixo dos pés. Mas a escritora alemã, que percebeu a omnipresença da tragédia tanto nas memórias do passado como nas atitudes do presente, quando se mudou para essa zona rural, foi além da exploração da perda e do luto humanos numa zona de confluências geológica e climática operáticas. Rombo, título roubado ao som cavo do trovão, revela as experiências de sete personagens face ao terramoto – como Sílvia, rapariguinha que sonhava ir passear até ao mar, a supersticiosa Lina ou o simples Gigi, que pouco sabe do mundo. Mas a protagonista poderosa que emerge, e fala numa linguagem cristalina com o leitor, é a paisagem, todo um mundo de montanhas, pedras, animais e criaturas invisíveis. Elsinore, 296 págs., €19,45
7. Livro da Doença
Djaimilia Pereira da Almeida
Catorze livros publicados deram à escritora uma aura: a de alguém capaz de manusear cinzas, memórias e emoções sem necessidade de altear a voz para se fazer ouvir. Os romances de Djamilia Pereira de Almeida crescem, germinam nos seus leitores como uma árvore – devagar mas inexoravelmente. A doença deste livro é da ordem do luto, e da luta dos que ficam para seguir em frente . Há ecos entre pais e filhos, rimas existenciais, a literatura a servir de jangada – ou de ilusão fantasmática. Livro da Doença começa pelo fim: “No momento em que morreu, Joaquim escrevia um livro que nunca me mostrou. Meu pai, meu estranho. Ouvi falar da sua obra inacabada desde criança. Onde guardar a dança da mão direita do escritor, enquanto projectou o romance, toda a vida adulta, o pontilhado de gestos abortados, os rascunho-fantasma, tentativas, planos, ou seriam sonhos, a energia despendida, o fogo de que irradiavam ideias que jamais viram a luz? O que restou foi o vazio. Mas talvez o vazio seja um lugar – uma cidade – repleto de avenidas.” Mais à frente, lê-se: “O livro do meu pai é, entre nós, homem vivo.” Esta filha-autora fará a prestidigitação de se fazer acompanhar pelo fantasma literário em todos os lugares: Lisboa, onde lhe acontecem “catástrofes”, vivida a partir da Margem Sul (“há uma diferença entre escrever e contar”, há de advertir); o álbum de infância da mãe noutro continente; a música de Coltrane; o passado colonialista (“Se eu tiver percebido que o meu pai, não Portugal, era o meu país?”); tudo o que não se cumpre. Relógio D’Água, 288 págs., €22