À partida, parece que estamos em presença daquilo a que se convencionou chamar um “supergrupo” – uma banda formada por gente que já tem grande reconhecimento noutros grupos e projetos musicais. Do alto dos seus 69 anos, Carlos Guerreiro desfaz equívocos, sorridente, com poucas palavras: “Somos super amigos!” Mitó Mendes, a vocalista destes Cara de Espelho, também questiona essa categorização: “Normalmente, nos supergrupos juntam-se músicos que têm carreiras ativas noutras bandas nesse momento; aqui, estávamos todos parados nesse sentido, tirando talvez o Nuno Prata, já que os Ornatos Violeta se voltaram a juntar pontualmente nos últimos anos…” Pedro da Silva Martins prefere sublinhar que esta é uma banda que surge “em contraciclo”: “Estamos todos numa idade em que normalmente se pensa ‘agora, vou é fazer uma carreira a solo’, mas juntámo-nos numa banda nova…”
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Tudo começou com um encontro fortuito à porta dos Correios, na Avenida de Roma, ainda antes da pandemia, entre Carlos Guerreiro e Sérgio Nascimento. A conversa acabaria num telefonema, ao fim desse dia, com uma frase que os músicos estão muito habituados a dizer e ouvir. “Eh pá, gostei muito de te encontrar, devíamos fazer alguma coisa juntos…”, disse Sérgio ao fundador dos Gaiteiros de Lisboa. Essa foi a semente.
Depois, seguiu-se um processo de soma de elementos, com convites endereçados pelo percussionista que já tocou com meio mundo na música portuguesa das últimas décadas. “O Sérgio é que foi juntando as peças”, diz Pedro da Silva Martins, que, para aceitar a proposta, pôs a condição de poder igualmente voltar a tocar as suas guitarras, entrar mesmo na banda. E são dele todas as 12 músicas e letras do disco de estreia dos Cara de Espelho – nome que nasceu de um verso da primeira canção em que trabalharam juntos, Cara Que É Tua: “O cara de espelho, assim batizado/ tem os defeitos dos outros espelhados…” Afinal, o objetivo neste disco é, também, pôr um espelho à frente de quem o ouve, “refletindo a sociedade”.
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Soando a música popular portuguesa do século XXI, há algo nestas canções que faz pensar no espírito e estilo de José Afonso: uma mistura de lirismo e intervenção, poesia livre e afirmações muito diretas, lado a lado. São canções que vão à luta. “Que arregaçam as mangas”, diz Pedro. “Que dão a cara…”, acrescenta Mitó. “Sinto que, às vezes, é preciso ser chato, andar a morder calcanhares, pôr o dedo na ferida. Isso faz bem e é importante neste momento”, diz o letrista.
Muitas delas têm alvos e temas bem claros, fazendo pensar na música de intervenção que animava o País há meio século. Desigualdades económicas e fugas aos impostos? Ouça-se Paraíso Fiscal: “Quando morrer eu quero subir ao Paraíso Fiscal/ vida de contribuinte é deveras infernal/ que São Pedro me receba no seu Portal das Finanças…” Ou Testa de Ferro: “Quero pôr maços de notas em pequenos envelopes/ Dar a fuga pro estrangeiro antes que alguém me tope/ Quero contas na Suíça, uma casa em Paris/ E chamada à justiça ser amiga do juiz.” As guerras dos nossos dias ou de sempre? Estão em Tratado de Paz: “No fim, será proclamado que todos ganharam/ mas sabemos quem perdeu.”
Em tempo de animada campanha eleitoral, uma canção em especial promete ser bastante polémica. Na letra de Dr. Coisinho, “um le penesinho pequenino, de brinquedo”, só falta mesmo identificar o nome do líder do Chega. Começa assim:
“O dr. Coisinho
Vem coisificar o medo
Ai, ó mulher, é branco,
Ai, ó mulher, é preto
O dr. Coisinho vem quantificar o erro
Ai, ó qu’ele é cigano, Ai, ó qu’ele é o demo…”
“Na nossa geração, e com o gosto musical que partilhamos, nós estruturámo-nos a ouvir José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira, Fausto…”, diz Mitó, ressalvando que o caso de Carlos Guerreiro é diferente: “Ele privou com eles, tocou com eles, foi até o braço-direito de alguns deles.”
“Será que estamos a cantar só para os nossos amigos?”, pergunta-se Pedro da Silva Martins. E responde: “Na verdade, não sei, nem interessa muito agora, logo se vê. Sei que é isto que queremos dizer e que achamos urgente dizer.” Carlos Guerreiro partilha essas dúvidas e inquietações: “Tenho-me questionado muito sobre quem vai perceber e gostar do nosso trabalho. Há uma clientela para isto? Será uma coisa muito geracional e que não chega aos mais novos?”
Depois do lançamento do disco, vem aí o desafio dos palcos, onde os Cara de Espelho vão ter canções novas, além das que estão no disco, para apresentar – há já concertos marcados em Braga (24 de fevereiro), Loulé (2 de março), Lisboa (5 de março) e Porto (16 de março).
Uma das características da maioria dos tais supergrupos da história da pop e do rock é que, por norma, não duram muito e tornam-se facilmente projetos de um disco só. Mas não é isso que estes músicos experientes veem no horizonte. “Com todo o compromisso da nossa parte, acho que não faz muito sentido lançarmos um disco e desaparecermos”, sintetiza Mitó. Para já, todos concordam numa avaliação a esta nova aventura em que embarcaram: “É um grupo muito divertido, estamos sempre a rir!”.
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