Sempre desconfiou das pessoas que se dizem muito seguras, cheias de certezas, sem fazerem grandes perguntas – e as suas personagens caminham pelos mesmos territórios movediços da dúvida: nas suas fraquezas e franquezas, apresentam-se inteiras e disponíveis para o Outro. É deste material humano e literário que Mia Couto, um dos mais destacados escritores de língua portuguesa, compõe a sua crónica mensal na VISÃO. São fragmentos de vida, que dão testemunho de uma realidade – a moçambicana – culturalmente muito rica e diversa. Depois d’ O Caçador de Elefantes Invisíveis (2021), o escritor volta a reunir estas crónicas/contos em livro, em Compêndio para Desenterrar Nuvens, uma edição, já nas livrarias, da editora Caminho. Romancista, contista e poeta, Mia Couto nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, em 1955. Estreou-se, em 1983, com Raiz de Orvalho e Outros Poemas, tendo desde então publicado mais de 40 títulos. Entre muitos galardões, foi distinguido, em 2013, com o Prémio Camões.
Só numa das crónicas da VISÃO integradas nesta recolha, O Descrucificado, se diz especificamente que foi baseada num episódio real, passado em Cabo Delgado. Apesar de estes contos serem publicados numa revista, é no sonho que continua a inspirar-se?
Sim, tem sido esse o meu compromisso desde o início. Sei que se podia esperar uma maior atenção à realidade moçambicana, mas é no domínio da ficção que eu me movo. Às vezes, tento encaixar as ideias que tenho no que se passa à minha volta, até porque escrever um conto, todos os meses, é muito irregular. Quando tudo corre bem, tenho uma ideia na cabeça e vou trabalhando nela, com calma, aproximando-me mesmo da ideia de conto e de ficção.
Toda a minha narrativa é conduzida por personagens. Sou convocado por elas, e são elas que me guiam
O problema, imagino, é o prazo.
Exato. Há situações em que faltam quatro ou cinco dias para a entrega do texto e ainda não tenho nada. Nessas circunstâncias é quase uma lotaria, pois não sei o que escrever. Aí, sim, confio não propriamente no sonho, como me perguntava no início, mas naqueles momentos antes do adormecer e do acordar, ou mesmo durante as insónias que vou tendo. É nessas alturas que me surge qualquer coisa, que serve de núcleo para pôr a história a andar.
Destaquei aquele conto porque, ao lê-lo mensalmente na VISÃO ou agora de seguida neste volume, se tivéssemos de escolher um, nunca elegeríamos O Descrucificado como um conto inspirado em episódios reais. As fronteiras entre realidade e ficção são muito difusas?
Sim, e no caso de Moçambique isso é muito claro, mas julgo que acontece também em Portugal e em qualquer lugar no mundo. A noção que temos da realidade mostra-nos que ela é muito pouco real ou previsível. A realidade é a mais ousada das ficções. Em Moçambique, como disse, talvez isso seja um pouco mais evidente, porque ainda há muitas realidades a chocar umas nas outras. É um país com muitas culturas e lógicas. Há, pelo menos, 28 povos, com as suas línguas, costumes e religiosidades. Por isso, basta sair à rua para se ser testemunha desses choques, que, por vezes, são pouco harmónicos, mas que, noutros casos, se combinam inesperadamente. Desse ponto de vista, a realidade moçambicana é muito apelativa. Não precisa da chegada de um escritor. Ela própria se diz e se constrói como uma ficção, que, a partir de tantos retalhos, tenta criar uma manta comum.

Nessa observação dos choques moçambicanos e nesses momentos de meio-sonho, meio-acordar, o que prende a atenção do contista?
Não é fácil dizer, sobretudo porque a génese de cada crónica é muito distinta. Quando tenho tempo e a coisa corre bem, chego até a pensar que a personagem que eu tenho na cabeça, ou já esboçada no papel, é tão boa que não a posso gastar num conto. Tem força para uma história mais longa. Porém, na maior parte dos casos, as personagens que aparecem nas crónicas surgem de uma narrativa maior que estou a construir no momento. Estou a meio de um romance e sinto que as personagens dos contos são parentes das personagens do futuro romance.
Todas lutam para entrar num lado ou no outro.
Sim, mas, também neste caso, sinto que sou muito privilegiado. Não faltam narrativas. Em Moçambique, não é preciso muita imaginação, não só pelo que se pode observar na rua mas também porque as pessoas estão sempre a contar histórias. E para essa partilha não é preciso haver uma intimidade ou um encontro específico. As conversas surgem a toda a hora e trazem sempre uma narrativa.
Quer dar um exemplo?
Tivemos recentemente eleições autárquicas. Ao acompanhar a campanha, deparei com momentos muito inspiradores. Uma senhora do secretariado técnico, que não é uma pessoa qualquer, dizia na televisão que estava tudo a correr bem na emissão dos cartões eleitorais, exceto algumas fotos de pessoas mais idosas que não saíam muito bem. O entrevistador – não de um canal qualquer, mas do principal de Moçambique – perguntou-lhe: “Não saem bem porquê?” “Porque por vezes saem hienas”, respondeu a senhora. A verdade é que um amigo meu fez no computador um cartão eleitoral com uma hiena, mostrou-o a várias pessoas e algumas não acharam estranho. Ou seja: o comentário não era do domínio da impossibilidade, da inverosimilhança. A fronteira entre o possível, o pensável como real e o fantástico é muito estimulante para um escritor.
Quem pede pureza à condição humana, que por definição é impura, acaba sempre no autoritário, a impor regras e visões do mundo
É um outro olhar?
É a possibilidade de se deixar tomar pelo espanto, sem se arrumar imediatamente o que se vê com o filtro da razão, dizendo que isto ou aquilo não é possível. Há uma credulidade que passa pela aceitação de outras lógicas e narrativas religiosas. O que, em outros contextos, é lido como realismo mágico, aqui é entendido de outra maneira.
Há pouco, ao comentar as ideias para as crónicas, falou sempre em personagens. De facto, mais do que episódios, é uma figura que emerge dos seus contos, quase uma vida resumida. Procura essa síntese das existências comuns?
Não sei se procuro, no sentido de ter consciência do que estou a fazer ou a escrever, mas é isso que me habita. Mesmo que tentasse fazer de outra forma, não saberia como. Toda a minha narrativa é conduzida por personagens. Sou convocado por elas, e são elas que me guiam.

A guerra, nomeadamente a do Norte de Moçambique, está muito presente em algumas crónicas. A literatura pode expor as consequências humanas de um conflito tão difícil de se compreender?
Sim, a literatura tem essa capacidade de mostrar, mesmo que essa não seja a intenção do autor. É uma guerra absolutamente cruel, ainda viva. Algumas histórias, que conto na VISÃO, são infelizmente muito próximas do que acontece, daquela imensa desumanização. A literatura é a exaltação do que nos une, e contar uma história pressupõe que há alguém que nos vai ouvir, mesmo que esse alguém seja inventado. Na escrita, há um processo de aproximação ao Outro quase íntima. A guerra, por seu turno, faz o oposto: afasta, dilacera, reduz o Outro a alguém sem história e que não consegue entender-nos. Mas há um certo olhar, uma certa modernidade, que não espera isso da literatura.
Em que sentido?
Há quem olhe para o contar histórias como qualquer coisa muito antiquada ou regionalista, e diz que já não são os viajantes que trazem histórias do Outro, mas pensadores de fenómenos, pessoas que trabalham do ponto de vista conceptual. Essa literatura tornou-se hoje hegemónica. Tenho todo o respeito por esta visão, mas o que mais me interessa são as histórias que provocam um laço profundamente humanizante.
Nos critérios dos jornais as guerras continuam, mas em alguns casos passam para segundo plano, às vezes porque surgem novas guerras ou outros acontecimentos. A literatura pode ser o único núcleo de visibilidade de uma guerra?
Sem dúvida, a realidade moçambicana, como quase todo o contexto africano, é vista como um espaço subalterno. África existe de vez em quando e com um olhar que mudou pouco desde as independências. Também há culpa do lado africano – porque em alguns casos se subordinou a esse olhar europeu –, que depois pedia o lugar e a condição da vítima. O grande desafio agora é apresentarmo-nos como sujeitos da nossa História, como contadores e construtores de uma narrativa, que é original e traz algo de novo para o mundo.
O leitor da VISÃO mergulha na sua crónica uma vez por mês, mas o leitor da recolha em livro entretém-se a encontrar fio condutores e recorrências. Vê denominadores comuns nestes contos?
Tem havido uma atenção à guerra, tal como houve uma observação mais próxima dos efeitos da pandemia. Interessa-me, ainda, explorar a procura atual de uma linguagem “politicamente correta” e o seu pensamento redutor, sempre a classificar e a criar normas. É um novo vocabulário, muitas vezes vazio, que não nos ilumina para quase nada. Quem pede pureza à condição humana, que por definição é impura, acaba sempre no autoritário, a impor regras e visões do mundo. Estes são assuntos muito sérios – como o respeito pela diferença na nossa condição de género, orientação sexual, raça, com tanto por fazer… – mas que, muitas vezes, ficam escamoteados pelo que é superficial. Isso só alimenta a extrema-direita, que, por ideologia e por um sistema de pensamento binário, tem uma natural resistência e uma estranheza a que se desarrume tudo o que servia e serve para lhe construir um sentido. Mas, mesmo que se justifique questionar essa dualidade tão esquemática, é preciso que haja uma discussão maior, mais sedutora, que não classifica logo o Outro de uma maneira maniqueísta.
Numa nota inicial, diz-se que estes contos têm neste livro uma versão revista e definitiva. É o cronista a pedir desculpa ao escritor pelo pouco tempo que teve para limar estas histórias?
Acertou [risos]. Sinto-me sempre na obrigação de dar uma explicação, de me justificar, porque, para o romance que estou a escrever, já fiz mais de 30 revisões e ainda vou a meio. Todos os dias regresso ao texto para o ler, escutar e perceber a sua musicalidade. O cronista vê-se sempre de agulha na mão, obrigado a enviar o texto quando ainda não acabou de costurá-lo.