1.Timbre
Salvador Sobral
O sucessor de BPM, álbum de 2021 que facilmente encontraríamos nas prateleiras da secção de “jazz”, nasceu de uma forma diferente dos registos anteriores de Salvador Sobral. Em estúdio, os temas não foram tocados por todos os músicos em simultâneo (“ao vivo”, algo típico dos processos jazzísticos), mas cada parte foi gravada separadamente – “num modo mais pop”, como explica Salvador. Ou seja, este é, mais do que nunca, um disco de canções, feito “com muito tempo”, em várias residências artísticas que juntaram o músico e o seu já velho cúmplice Leo Aldrey, venezuelano sediado em Barcelona.
Várias canções são em castelhano, num álbum em que o autor quis mostrar o seu lado mais “latino-americano e folk”. Destaque para a belíssima De La Mano de Tu Voz, cantada em dueto com a mexicana Silvana Estrada e dedicada à música espanhola Silvia Pérez Cruz, Al Llegar, com participação do uruguaio Jorge Drexler, e Se Quando Tu Vieres, escrita pela irmã Luísa Sobral a pensar na filha de Salvador, Aida (que em breve completará o primeiro aniversário). “Tenho este grande privilégio, ela transforma as minhas emoções em canções”, diz o artista celebrizado por Amar pelos Dois, canção também escrita por Luísa.
2. Mãe
Cristina Branco
Quando se estreou em disco, em 1997 – uma estreia inusitada, com um álbum gravado ao vivo nos Países Baixos, In Holland –, todos associámos Cristina Branco a uma nova vaga de fadistas que estava a revitalizar a canção nacional. Mas ao longo dos anos, a cantora nascida em Almeirim foi mostrando que era muito mais do que isso e que a sua identidade não podia ser encerrada no universo do fado, estava aberta a muitos mundos e imaginários da música popular. Como grande argumento, denominador comum a todos os seus trabalhos, sempre apresentou uma voz imediatamente reconhecível, um belo timbre que é só seu.
Dezoito álbuns depois, é ao fado que Cristina regressa. Das nove faixas de Mãe, cinco são fados tradicionais – sendo logo o primeiro Senhora do Mar Redondo, uma letra de Lídia Jorge encaixada no Fado Cravo, de Alfredo Marceneiro, seguindo-se palavras escritas pela jovem fadista Teresinha Landeiro (com música de Joaquim Campos, Fado Rosita), em Folha em Branco. Mesmo os quatro temas originais (um deles, Passos Certos, composto pela própria música e por Bernardo Couto) remetem para o imaginário fadista. Sobre este regresso, diz a artista: “Às vezes, é preciso ir para longe, para fora de pé, para perceber melhor o que é o fado, o que posso dar-lhe e receber desse lado.” Cristina Branco não hesita mesmo em dizer que o fado está hoje muito mais dentro de si, “incorporado”, do que quando começou a cantá-lo, há 25 anos.
A “mãe” que dá título ao disco não remete propriamente para a experiência maternal, mas fala antes do papel da música na sua vida: “Um porto seguro a que nos agarramos como se a nossa vida dependesse disso, uma força motriz que nos faz continuar.”
3. Zeitgeist
The Legendary Tigerman
Os sintetizadores modulares sobrepõem-se às guitarras elétricas no novo disco de Paulo Furtado/The Legendary Tigerman, mas o espírito e o som do mais genuíno e autêntico rock’n’roll mantêm-se intactos. Nesta aventura (arriscada?) do músico de Coimbra, pensa-se imediatamente numa figura tutelar do rock (quase) sem guitarras: Alan Vega e os seus Suicide. Não espanta, pois, encontrar logo na quarta faixa uma poderosa versão de Ghost Rider.
Zeitgeist foi todo pensado e composto em Paris, em 2019, ainda antes da pandemia. Com várias colaborações e duetos, faz pensar facilmente em Femina, que Tigerman lançou em 2009 e muito contribuiu para a sua internacionalização. Aqui, podem ouvir-se as vozes de Asia Argento, Anne Prior (baterista dos Metronomy), Delila Paz, Jehnny Beth (Savages), Catarina Salinas (Best Youth), o também coimbrão Sean Riley, Sarah Rebecca e Teresa Castro (aka Calcutá). O resultado final pode aproximar esses dois discos, mas o caminho para lá chegar, segundo Paulo Furtado, foi bem diferente: “Nos duetos de Femina eu ia ao encontro de certas artistas e seus universos, aqui pensei nas pessoas que faltavam para que as minhas canções ficassem mais perfeitas.” Os ingredientes de blues, rock e punk continuam a ser a base da identidade de The Legendary Tigerman neste Zeitgeist, mas o músico vê no disco uma ponte com outro dos seus trabalhos habituais: “Deixei o cinema entrar pelo rock’n’roll adentro e tomar conta do álbum, há aqui uma forte ligação ao que costumo fazer quando componho bandas sonoras.” E nessa função, o “homem-tigre” transforma-se mais em camaleão, adaptando-se a cada registo cinematográfico.
4.Três Anos de Escorpião em Touro
Filipe Sambado
“Sou mais eu quando não tenho medo de ser”, canta Filipe Sambado, na canção Talha Dourada, do seu novo disco. E logo na faixa seguinte, Mania, repete em loop “eu sou, eu sou, eu sou…”. Não há como fugir-lhe: a identidade é um tema central neste álbum, composto em tempos conturbados, para o mundo e para si. “Aconteceram em mim mudanças significativas durante estes Três Anos de Escorpião em Touro: a minha reafirmação de género, uma reconstrução familiar (ser pai, mãe, “papita” ou outro papel de parentalidade não binária), reapropriação discursiva, incerteza, ansiedade, depressão, que trouxeram consigo um confronto com a identidade”, escreve na apresentação do disco.
Desde que se deu a conhecer artisticamente, há cerca de uma década, Sambado soube afirmar uma voz própria, com um pé no passado (as referências aos códigos da melhor música popular portuguesa, e suas tradições, são imediatamente reconhecíveis) e outro no futuro, bem evidente neste álbum, com uma certa cacofonia, de pesquisas e percursos, que é boa metáfora destes tempos e do porvir. Este é, afinal, um retrato de alguém no meio do caminho, olhando em frente. Na comunicação com a imprensa a propósito do disco, há mesmo uma espécie de manual de instruções: “Filipe Sambado é uma pessoa não binária e por isso usa todos os pronomes (ordem de preferência sendo ‘elu/delu’; ‘ela/dela’; ‘ele/dele’).”
5. Leveza
André Henriques
A sensação repete-se: pouco depois de carregarmos no “play”, somos imediatamente transportados para o universo dos Linda Martini. A voz e o fraseado do seu vocalista, André Henriques, são tão reconhecíveis e únicos que tornam quase impossível esquecermos a sua banda. Mas é mesmo isso que devemos tentar fazer. Depois da estreia a solo, em 2020, com o promissor Cajarana, André prova que o seu estatuto de escritor de canções e intérprete em nome próprio é mesmo para levar a sério. Leveza apresenta-se com 12 temas que, muitas vezes, logo nos títulos, revelam a mestria de letrista de André, com um sentido poético muito seu, entre a melancolia e a ironia, ou mesmo um humor subtil, às vezes em pequenas narrativas: Abriu em Queda, Milagre na Óptica do Utilizador, Falava em Línguas, Ela Deu Maçãs…
Na ótica do próprio artista, Leveza reflete, ainda, como Cajarana, uma opção de vida, mudar-se para fora da cidade e dos “passos apressados”: “Há uma procura, e uma intenção, de encontrar outro vagar, nos dias e nas canções.” Esse tempo sente-se numa produção cuidada, em que cada canção parece ter mesmo a roupagem que merece. “Falo de mim e da minha família, mas também de um pedreiro que sem saber me deu a receita para uma canção, de como se faz uma casa por cima de uma casa ou de correspondência perdida em trânsito entre este mundo e o outro, falo de janelas, daquelas que são de abrir e das que temos de rasgar, da cotação do amor na bolsa de valores, nos dias em que me agarro a coisas que prometi largar, do profano e do sagrado, de milagres e vulgaridades”, diz André. No fundo, o que lhe guia os passos é a mesma intenção, artística e vital: “O grande gozo disto tudo continua ser a procura do espanto e a possibilidade de o partilhar.”
6. Paus e o Caos
PAUS
A grande força dos PAUS pode transformar-se facilmente num problema. Surgiram em 2009, com energia para dar e vender, numa formação muito pouco usual: duas baterias na boca de cena (com Hélio Morais e Quim Albergaria aos comandos), um baixo (a cargo de Makoto Yagyu) e teclas (com Fábio Jevelim), com todos os músicos a contribuírem nas vozes. A intensidade da sua música, difícil de definir numa só palavra/género musical, sente-se melhor ao vivo, mas eles têm tido a preocupação de evoluir, à antiga, a partir de álbuns (e já lá vão seis) pensados com uma identidade e uma história próprias. O que pode ser problemático passa por conseguir avançar, fazer diferente, procurar caminhos novos, a partir duma estrutura tão original – que é, na verdade, só deles e resulta num som muito próprio.
A propósito deste Paus e o Caos, Quim Albergaria aborda esse dilema: “Desde o início que a nossa premissa foi procurar a periferia do que era possível com uma bateria siamesa, um baixo, um teclado e quatro vozes. O que queremos é que a nossa música nos excite, surpreenda e incomode, e a solução desta vez foi interferir no formato para impactar a forma.” Assim, depois de terem gravado uma primeira versão dos temas do novo álbum, com a marca bem distinta dos PAUS, chamaram mais músicos para acrescentarem camadas. “A escolha do Iúri Oliveira, do João Cabrita e do Thomas Attar”, explica o baterista/vocalista, “aconteceu porque os três tocam instrumentos que queríamos ouvir sobre o que tínhamos feito [percussão, sopros e guitarras, respetivamente].”Pensado, ao mesmo tempo, como um disco e um novo espetáculo, Paus e o Caos nasceu para, diz ainda Quim Albergaria, “nos dilatar limites e diluir constrangimentos de forma”.
7. Ressaca Bailada
Expresso Transatlântico
O único disco nesta seleção que é uma estreia. A música dos Expresso Transatlântico não é fácil de classificar ou de arrumar numa só gaveta, mas, ao mesmo tempo, é-nos familiar e tem uma genealogia que nos ajuda a compreendê-la. Os Dead Combo, de Pedro Gonçalves e Tó Trips, são simultaneamente referência e influência, não só na sonoridade mas também numa certa maneira de divagar pela cidade de Lisboa dando-lhe uma banda sonora, que tanto cheira a fado como a rock e a ritmos de paragens longínquas, do outro lado do Atlântico – a terceira faixa do disco explicita, mesmo, essa relação: O Gangster (Canção para Dead Combo).
Formada pelos irmãos Gaspar e Sebastião Varela e pelo seu amigo de infância Rafael Matos, a banda é um espaço de experimentação e liberdade. No modo livre como o jovem Gaspar aborda aqui a guitarra portuguesa, também há antecedentes (sendo o mais óbvio Luís Varatojo, pelo que fez n’A Naifa ou nos Fandango). “As músicas são sempre dos três, compomos mesmo em conjunto, com total liberdade”, diz Gaspar, “e nesse sentido, a nossa música também é um bocadinho punk”. Neste primeiro disco apresentam nove temas, e apenas um, exceção que confirma a regra, não é instrumental: Barquinha conta com voz e letra de Conan Osíris. Antes de se apresentarem em disco, os Expresso Transatlântico tocaram já em vários palcos, mesmo fora de Portugal, e têm mostrado que é aí, olhos nos olhos com o público, ou até no meio dele (Gaspar não resiste, muitas vezes, a saltar para a plateia), que se sentem bem.