FICÇÃO
1. Viver Depressa
Brigitte Giraud

Quando se lida com um trauma, um acidente ou uma injustiça da vida, a dúvida – o famoso “e se…” – é certamente um dos piores momentos da longa trajetória do luto, da negação à aceitação. Para reconstituir e arrumar a morte do seu marido, em 1999, num acidente de moto, a francesa Brigitte Giraud percorre todos os “e ses” possíveis (dos semáforos à chuva e da marca da moto às hesitações), numa busca incessante pelo sentido que tantas vezes escapa à vida. Na linha da autoficção, com longa tradição nas letras francesas, é o relato pungente de uma família que se desfaz. Com Viver Depressa, Brigitte Giraud recebeu o prestigiado Prémio Goncourt em 2022. Planeta, 208 págs., €16,90
2. O Polaco
J. M. Coetzee

O novo romance de Coetzee foi primeiro publicado, no ano passado, em espanhol (numa editora argentina), antes de no inglês original. Foi uma espécie de afirmação política e cultural deste escritor nascido em 1940 na África do Sul, Nobel da Literatura em 2003. É uma enésima variação de um dos grandes temas da literatura: o encontro entre um homem e uma mulher, a partilha, o amor, a paixão. Ele é um pianista polaco, Witold Walczykiewicz, de 72 anos, especialista em Chopin. Ela é Beatriz, uma espanhola cerca de 30 anos mais nova, casada, que o ajudou a organizar um concerto em Barcelona. O estilo é rigoroso, elegante. Na longínqua base de tudo está o clássico amor de Dante por Beatrice e, como inspiração, Coetzee também cita o livro autobiográfico de George Sand Um Inverno em Maiorca, que fala da sua relação com Chopin. Dom Quixote, 160 págs., €15,90
3. Sobre o Céu
Richard Powers

Vencedor do Pulitzer em 2019, Sobre o Céu (título original Overstory), de Richard Powers, é agora publicado em Portugal pela Presença, que já em 2022 tinha trazido Assombro aos leitores nacionais. Nas primeiras páginas deste romance, que tem tanto de lírico quanto de objetivo, conta-se a história de nove personagens desconhecidas entre si, mas todas com alguma ligação às árvores. A partir de então, ergue-se um tronco comum, que junta, em diferentes ações, todas as figuras, num tema bem atual: a relação do Homem com a Natureza. Contas feitas, este livro acaba por ser uma metáfora sobre aquilo que cada um de nós retira dela – em excesso, na maioria das vezes. Editorial Presença, 440 págs., €23,90
4. O Quarto do Bebé
Anabela Mota Ribeiro

A história começa com uma mulher, fechada no início do confinamento da pandemia. Com ela estão as suas obsessões, angústias e dores: um cancro de mama recente, uma menopausa forçada, a fixação com a limpeza, o medo de ratos, um bebé que nunca nasceu, a morte dos seus. O fio condutor da narrativa são os dias enclausurados, que se somam uns a seguir aos outros, e o manuscrito que a protagonista, Ester, encontra depois da morte do seu pai, psicanalista. Trata-se do diário de uma paciente, com o título Fala Orgânica. “Escrever é conseguir estar nua, desorbitada, fora do tempo cronológico. É avançar nua e intrépida. E sem vergonha, que é o mais difícil”, diz Ester. Ou será Anabela Mota Ribeiro, jornalista que agora se estreia na publicação de um romance e pela primeira vez fala da sua luta contra a doença? Pouco importa. A voz, ao longo de todo o livro, é uma na qual quase todas as mulheres se reconhecem, quando fala do impulso da maternidade e da fertilidade, do peso do envelhecimento, da pressão social e da urgência cuidadora, da dor da perda, da mortalidade. É um diário? É um romance? É autobiografia? É ficção? É psicanálise? O Quarto do Bebé é isto tudo, e são essas várias camadas que fazem dele um livro que nos agarra do princípio ao fim. M.A. Quetzal, 277 págs., €17,70
5. Memória de Rapariga
Annie Ernaux

Um daqueles casos em que o a atribuição do Nobel (em 2022) aproximou, por cá, uma obra literária de muitos mais leitores. A autoficção de Annie Ernaux é sedutora e isso prova-se, mais uma vez, neste Memória de Rapariga, publicado em 2016, recuando ao verão de 1958. Trata-se de cumprir um projeto adiado, fechando um ciclo (abrindo outros?): “Há vinte anos que anoto ‘58’ em projetos para livros. É o texto permanentemente em falta.” Livros do Brasil, 160 págs., €16,65
6. O Jogo das Escondidas
Fernando Sobral

Romance póstumo do jornalista e escritor desaparecido em maio de 2022. Nele, Fernando Sobral regressou a um tema/lugar que o fascinava: Macau. O Jogo das Escondidas é uma trama bem urdida passada há um século, em 1923, quando no território asiático português se temia a venda da colónia aos alemães. O poder da República, em Lisboa, era algo de longínquo e pouco relevante para o quotidiano duma cidade vibrante, entregue a segredos, jogo(s), ópio, lupanares… O tenente Félix Amoroso, português já enfeitiçado pelos modos asiáticos, e o falso padre franciscano Benedito Augusto estão no centro do enredo desta melancólica história de espiões e almas perdidas. Quetzal, 184 págs., €17,70
7. Uma Família em Bruxelas
Chantal Akerman

Nascida em 1950 e falecida em 2015, a belga Chantal Akerman foi uma artista multifacetada, destacando-se, sobretudo, no cinema. A escrita foi um campo menos explorado, mas nem por isso menos central. Nele, revisitou alguns dos seus temas de eleição, nomeadamente a figura da mãe, as relações familiares, o mundo das mulheres. Uma Família em Bruxelas é uma narrativa, breve e hipnotizante, justamente sobre essa busca da identidade. Sozinha no seu apartamento, após a morte do marido, uma mulher liga-se (em telefonemas sucessivos) ao mundo e ao (peso) do passado – dos campos de concentração aos laços familiares. BCF Editores, 66 págs., €9
8. A Arte de Driblar Destinos
Celso Costa

Todos os países têm histórias como esta, mas nunca há duas histórias iguais. No interior do Brasil, numa aldeia do Paraná, um menino tenta ultrapassar a reduzida escolaridade obrigatória que todos veem como suficiente. Mas ele persiste, e pergunta e volta a insistir. Assim, com a ajuda de uma professora, persegue o seu sonho de vir a ser, também ele, professor. Distinguido com o Prémio Leya, A Arte de Driblar Destinos é a história de muitos brasileiros, incluindo do próprio Celso Costa, matemático que aqui arrisca a sua primeira incursão literária. Do interior para os grandes centros, o seu caminho fez-se contra todas as probabilidades. E de muitas aventuras. Em cada paragem, que representa um avanço nos graus de ensino, ele cruza-se com as personagens mais extraordinárias, que reforçam o caráter quase ficcional do seu trajeto. Retrato de um certo Brasil, A Arte de Driblar Destinos é uma engenhosa narrativa e uma apologia da Educação como pilar de todas as liberdades pessoais. Leya, 280 págs., €16,60
9. Guerra
Louis-Ferdinand Céline

Foi um acontecimento literário de 2022 a publicação deste inédito de um dos grandes escritores do século XX, Céline. E não é um inédito qualquer… Estas páginas tinham desaparecido em 1944, durante a libertação de Paris, ainda em plena Segunda Guerra Mundial, e falavam da participação do seu autor numa outra guerra, a Primeira, entre 1914 e 1918. A biografia e a obra do médico e escritor Louis-Ferdinand Destouches (Céline era pseudónimo) foram profundamente marcadas por esta passagem pela experiência direta de guerra. Com muito de autobiográfico e alguma ficção, Guerra, encontrado em manuscritos que deram muito trabalho aos editores, é um testemunho tristemente atual. “Apanhei com a guerra na cabeça”, lê-se logo na primeira página. Livros do Brasil, 152 págs., €16,65
NÃO FICÇÃO
10. Falhar Melhor, A Vida de Samuel Beckett
James Knowlson

Eis um dos acontecimentos editoriais que vão marcar o ano de 2023: a monumental biografia de Samuel Beckett, de James Knowlson, publicada na coleção Empilhadora, do Teatro Nacional S. João e da Húmus. Trata-se da mais completa viagem pela vida e pela obra do dramaturgo irlandês, sempre avesso a relatos biográficos. Beckett viu em Knowlson um grande conhecedor do seu trabalho, aceitando colaborar sem interferir. Em foco, as suas peças e outros escritos, envolvidos no contexto familiar, nas amizades e nos projetos que dinamizou. Um retrato de uma figura única que, com a sua radicalidade e com a sua originalidade, marcou o teatro do século XX. Edições Humus, 832 págs., €30
11. Linguagens da Verdade
Salman Rushdie

Não é mais um romance de Salman Rushdie, mas nestas páginas o que não falta são referências a ficções literárias e ao mundo da escrita e dos escritores. Aqui se cruzam várias palestras, discursos e conferências com textos escritos para revistas e livros. O tom é de conversa, com referências que vão de Charlie Brown a Samuel Beckett, García Márquez, Philip Roth, Shakespeare, entre muitos outros nomes. Nestes ensaios escritos entre 2003 e 2020, Rushdie fala-nos, muitas vezes, na primeira pessoa, contando histórias e partilhando memórias e reflexões; erudição, humor e uma elegante descontração coexistem nestes textos. O último é já sobre a pandemia, escrito antes das eleições americanas de 2020, desejando a derrota de Trump: “Se não for assim, o Deus em que não acredito precisará de nos ajudar a todos.” Dom Quixote, 392 págs., €22,20
12. Miserável no Paraíso – A Vida de Anthony Bourdain
Charles Leerhsen

É tarefa difícil escrever uma biografia sobre uma figura que narrou uma boa parte da sua vida numa autobiografia tornada best-seller mundial – falamos de Cozinha Confidencial, publicada em maio de 2000, que catapultou um cozinheiro sem grandes artifícios culinários e aspirante a escritor para a fama. Alguém que nos ofereceu centenas de horas de televisão em viagens gastronómicas pelo mundo, que raramente se coibia de dizer o que pensava. Implacável, audacioso, seguro de si. Na aparência, todos conheciam Anthony Bourdain, o homem com um emprego de sonho. Mas o seu suicídio, num vilarejo francês em 2018, provou o contrário. Através de uma tentativa de leitura de personalidade, que vai da infância à idade adulta, feita com base em três anos de pesquisas, 85 entrevistas e acesso a arquivos pessoais (apesar do chumbo redondo por parte do círculo mais íntimo do chefe), o jornalista norte-americano Charles Leerhsen tenta perceber o que levou Bourdain a tal ato de desespero. Foi a relação com Asia Argento? O alcoolismo? O cansaço do sucesso? Não há uma resposta; há caminhos ou indícios, no entender deste autor, o qual monta uma narrativa de leitura fácil e pautada por curiosos detalhes sobre uma vida à margem da norma. Minotauro, 348 págs., €19,90
13. Uma Valsa com a Morte
João Tordo

De João Tordo já sabíamos que era um narrador de enormes recursos, capaz de nos oferecer enredos bem urdidos e contados de forma cativante. Mas com Manual de Sobrevivência de um Escritor, de 2020, descobrimos o seu lado mais reflexivo, de interpelação da vida e do seu ofício, que se revelou igualmente sedutor. Uma Valsa com a Morte é um prolongamento dessa conversa consigo e com os leitores sobre os temas que têm marcado o seu percurso. A morte da sua avó, em dezembro de 2022, foi o pretexto para reunir estas reflexões sobre música (muito importante no seu ato criativo), literatura, melancolia e espiritualidade. Texto sobre a arte de estar vivo e as armas que podemos usar para combater a fatalidade da morte. Companhia das Letras, 224 págs., €16,65
14. João Abel Manta Cartoons 1969-1992
Org. Pedro Piedade Marque

Nascido em 1928, arquiteto de formação, João Abel Manta foi um dos mais extraordinários desenhadores e ilustradores portugueses da segunda metade do século XX. Este livro é apresentado como uma reedição do álbum editado pel’O Jornal em 1975, que reunia os cartoons publicados na imprensa entre 1969 e 1975 – nomeadamente no Diário de Lisboa, no Diário de Notícias e n’O Jornal –, mas é, na verdade, mais do que isso. Pedro Piedade Marques juntou, em muitos deles (e são mais de 200), notas contextualizadoras e um texto introdutório em que conta os passos e as circunstâncias da colaboração de Abel Manta com a imprensa, ajudando assim a perceber o que eram os jornais no período marcelista, a censura e os tempos do PREC. O álbum tem um capítulo inteiro com desenhos proibidos no Diário de Lisboa. Abel Manta insistia em fazer cartoons que sabia que não iam passar na censura, porque acreditava que ficariam como testemunho de uma época e ajudariam a “explicar um certo número de coisas que se estavam a passar”. Estava absolutamente certo. C.L. Tinta da China, 256 págs., €36,90
15. Da Weasel, uma Página da História
Ana Ventura

Foram necessárias horas e horas de entrevistas para que este grosso volume ganhasse vida. Objetivo: contar a história dos Da Weasel, desde os primeiros passos, em 1993, até ao apoteótico regresso aos palcos no verão de 2022 (depois da paragem anunciada em 2010), com todas as peripécias e ruturas pelo meio. Ana Ventura aceitou o desafio e falou, separadamente, com Carlão, João Nobre, Virgul, Quaresma, DJ Glue e Guillaz. O livro lê-se como uma longa conversa em que as perguntas da entrevistadora estão ausentes e os seis membros da banda, pioneira no hip hop em Portugal, nos falam, na primeira pessoa, sobre a grande aventura das suas vidas. Showtime, 560 págs., €21
16. Pensar ao Contrário
Berthold Gunster

Dois filhos de um homem que sempre bebeu em excesso e cometeu demasiados crimes são entrevistados, separadamente, para um estudo. Um seguiu as pegadas paternas, o outro tornou-se um profissional exemplar. “Como chegaram ao que chegaram?” era a pergunta essencial. E a resposta, igual, foi: “Com um pai assim, do que estava à espera?” Para não seguir o rumo que não queremos, é preciso “pensar ao contrário”, filosofia defendida por Berthold Gunster, um dos mais populares autores dos Países Baixos, que se afirmou, primeiro, como dramaturgo e encenador. Cheio de exemplos curiosos, este volume (com o subtítulo A Arte de Transformar Problemas em Oportunidades) procura desmontar as expectativas e os preconceitos que condicionam as nossas perceções, de modo a vermos mais oportunidades e menos problemas. Lua de Papel, 320 págs., €17,90
17. A Vida por Escrito: Ciência e Arte da Biografia
Ruy Castro

Biografou o escritor Nelson Rodrigues e o futebolista Garrincha e, à sua maneira, com reconstituições da história e da cultura de época, biografou também a Bossa Nova e o Rio de Janeiro. Há ainda mais vidas escritas pela pena de Ruy Castro (n. 1948) – muitas trazidas para Portugal pela Tinta da China –, que no ano passado transformou em livro aquilo que ensina em cursos de escrita para biografias há cerca de 25 anos. Esta obra, em jeito de manual para interessados nesta arte, mas também para admiradores da forma como Ruy Castro envolve o leitor nas suas histórias, é um portal de acesso às técnicas do escritor, ao modo como atua na escolha das personagens, na recolha de informação, na confirmação de dados e na fase da escrita. Tinta da China, 200 págs, €16,90
POESIA
18. Florilégio
Maria Sequeira Mendes, Joana Meirim, Nuno Amado (org.)

Quem conta um conto acrescenta um ponto. E quem lê um poema? Acrescenta, certamente, uma leitura, a sua. É a partir desta ideia – de que um poema pode ter múltiplas leituras – que se organiza esta antologia poética que é, também, uma reunião de ensaios. Cada poema é comentado por quem o escolheu, num texto que salienta aspetos centrais ou laterais, consensos ou dissidências. Dos clássicos aos contemporâneos, de ensaístas consagrados a emergentes, um volume que mostra como “a poesia não tem de ser inacessível, complexa e explicada por palavras difíceis” e que “a leitura de poesia não pertence ao domínio do inefável nem está ao alcance apenas de fumadores de cachimbo”. não (edições), 232 págs., €20
19. Choupos
Adília Lopes

Mais uma (pequena) peça no puzzle da vida literária de Adília Lopes. Autora/personagem e poemas confundem-se neste caso único, à parte, na nossa poesia contemporânea. Essa espécie de mitologia adiliana é sublinhada neste breve volume com a inclusão de imagens da infância de Adília Lopes e da sua casa. Memórias, observações, pequenos enigmas e tiradas aparentemente pueris continuam a dar corpo a este peculiar universo poético. “Gosto de dar notícias do meu mundo”, diz-nos Adília a páginas tantas; e fala-nos dos choupos da sua “rua lisboeta.” Assírio & Alvim, 72 págs., €14,40
20. Última Vida
Fernando Pinto do Amaral

Desde 2019, ano de O Terceiro Vértice, que não havia um volume novo de poemas de Fernando Pinto do Amaral. O que a humanidade viveu desde aí pode bem dar o mote para a terceira e última parte deste livro, com vista para o “fim do mundo” – pode ser um “dilúvio”, um “asteroide” ou só a nossa própria morte, individual e total. Na primeira parte, Música Cega, recupera-se a arte perdida do soneto; e a segunda, Not a Love Letter, começa assim: “Não, isto não é uma carta de amor (…)” Comum a todas as páginas e a todos os versos, uma certa melancolia muito nossa. Dom Quixote, 120 págs., €13,90