“Este disco podia ser só difícil, mas eu sinto que é maioritariamente leve, otimista e positivo. Espelha bem o que eu sou hoje: em 80% dos dias, está tudo bem”, diz-nos Isaura, 33 anos, no seu acolhedor e luminoso estúdio, no rés do chão de um prédio de Telheiras. O ano de 2020 foi passado a lutar contra um cancro da mama, e a edição de Invisível (já disponível em formato digital) assume a forma de um renascimento. Agora, Isaura, licenciada em Biologia Molecular e Celular, e que continua a trabalhar na área de comunicação de ciência, está ansiosa por voltar aos palcos. A primeira apresentação ao vivo do novo disco acontece no próximo dia 21, no Musicbox, em Lisboa.
Na entrevista que deu à VISÃO em 2018, ano do seu álbum de estreia, a primeira pergunta era sobre o “carrossel de emoções” vivido por ter ganho o Festival da Canção, tendo depois ficado em último na Eurovisão. Mal podia imaginar o que vinha a caminho. A luta contra um cancro obrigou-a a suspender a carreira. Hoje, olha para a sua vida com um antes e um depois marcados por essa experiência?
É inevitável. Quando vivemos uma situação dessas, somos obrigados a parar e a reavaliar o que temos andado a fazer. Há tantas incertezas, tantas coisas que não controlamos, tantas variáveis numa situação tão extrema e para a qual temos tão poucas ferramentas… que somos obrigados a ter uma conversa brutalmente honesta connosco próprios. E, como passamos a viver em função de tratamentos e consultas, há ali muitos tempos mortos. Lembro-me de pensar: “Quando eu voltar” – sempre achei que isso ia acontecer – “o que é que quero fazer? Quero dedicar o meu tempo a quê?” Acho que mesmo a minha relação com a música, que não estava numa boa fase, foi sendo trabalhada por essa vida em terapia. Estava cansada de certas rotinas, jigajogas que existem na indústria e para as quais não tenho paciência… Fiz muitas perguntas a mim própria. Por exemplo: “O que significa, para mim, na música, ter sucesso?” Essas perguntas, não só sobre música, claro, serviram como terapia para hoje estar melhor e mais feliz.
Quem passa por essas situações extremas fala, quase sempre, de sair dessa experiência olhando a vida de outra maneira. Faz sentido?
Claro. Acreditava que ia voltar, superar tudo aquilo, mas claro que tive muito medo. Continuo a ter. Acho, aliás, que, de certa forma, a altura dos tratamentos foi mais fácil do que este momento. Quando passamos por esse processo, estamos no modo de sobrevivência, com uma adrenalina que te dá uma coragem que nem é bem tua… Há um protocolo, e tu segues esse protocolo, o melhor que consegues. Ou seja, sentes que há um caminho e que estás a percorrê-lo. Agora, é mais difícil porque já não há caminho nenhum. O meu médico diz-me: “Isaura, vai viver a tua vida!” Obviamente, tenho de continuar a vigiar a minha situação; continuo a fazer tratamentos. Há muitas coisas que me ligam àquilo tudo, mas esse tal “modo de sobrevivência” e as suas rotinas desapareceram. Julgo que a grande diferença, agora, é que faço poucos planos a longo prazo. Estou muito mais focada no agora, ou nos próximos dois ou três meses… Estou muito mais focada nas pequeninas coisas e fico feliz por coisas mais pequenas. Quando se está nessa rotina da doença, não é nada garantido sermos donos do nosso tempo, não sabemos sequer o que vai acontecer para a semana. É inevitável sentirmos uma diferença em nós depois desta experiência.
A propósito do disco Human, dizia-nos que a música, para si, tinha um lado muito terapêutico e que, nas suas canções, só conseguia falar de si, não conseguia inventar sobre coisas que não vivia…
Cada artista tem a sua forma de espelhar a identidade. Na forma como abordo a minha música, sou sempre muito biográfica… As canções podem não ser exatamente sobre mim, mas são sobre coisas que, de alguma forma, fazem parte da minha vida. Não sou muito de inventar um conceito e, depois, ver-me como personagem… Para mim, é tudo muito real. Nas minhas melhores canções, abro a boca e… as palavras saem, falo do que me vai na alma naquele momento. E tento ter a coragem de não me castrar.
Não corre o risco de se expor demasiado?
Sim, e acho que já o fiz. Mas, aqui, tive mais a preocupação de não me censurar, o que também já fiz imensas vezes… Neste disco, se queria dizer “medo”, dizia; se queria dizer “amor”, “chorar”, “gritar”, dizia…
É óbvio que a doença está presente em algumas canções. Até chega a usar a palavra “medicamentos”, nada musical.
Quando estamos nos tratamentos, há uma coisa que se chama “chemo brain”. Isso marcou-me. Os medicamentos provocam-nos uma certa lentidão, como se houvesse uma névoa entre nós e o mundo, os pensamentos são difíceis de ligar. E a minha maneira de lidar com isso era escrever, escrever, escrever… Não eram canções, era só escrita, a minha forma de raciocinar quando tinha medo ou me sentia mais insegura. Acho que aprendi a fazer com que os meus momentos de introspeção servissem mesmo como terapia, não só para a minha vida, em geral, mas também para a minha relação com a música. Descobrir o que pretendo da música: sentir que consegui expressar-me, que fiz qualquer coisa que não existia… A relação com as pessoas, no estúdio, também assumiu muita importância. Por exemplo, com o Filipe [Survival]. Começámos como produtor e artista e acabámos como amigos. Aprendi a focar-me mais no que depende de mim.
Todas estas canções são recentes? Depois da sua doença, ou durante, também houve a pandemia a mudar tudo…
Sim, quando estava em tratamentos. Vivi tudo de uma forma mais solitária, não podia receber visitas. Mas, ao mesmo tempo, também me senti mais protegida: não tinha sido só a minha vida a parar; de repente, parece que toda a gente tinha parado comigo. Isso até me fez sentir acompanhada. E, como todos estavam de máscara, eu passava mais despercebida, não se notava tanto que não tinha cabelo nem sobrancelhas… Acho que a Covid me deu uma ajudinha, pelo menos a não me sentir tão desamparada.
E quando aconteceu mesmo o regresso à vida normal e à escrita de canções?
Fui diagnosticada em janeiro de 2020. Para mim, os tratamentos só acabam quando te voltas a reconhecer ao espelho, o que aconteceu só no final desse ano. Comecei a sentir uma urgência de voltar a fazer coisas em janeiro de 2021, mas ainda não me sentia preparada para estar sozinha em estúdio, a trabalhar. A minha estratégia foi chamar amigos, começar a fazer música com eles, conversar muito…
Este é um daqueles discos em que o título não corresponde ao de nenhuma canção. Porquê Invisível?
Havia uma faixa, muito pequena, em que eu brincava com essa palavra, “invisível”, mas depois acabou por não entrar na versão final. Acho que essa palavra define bem a essência deste disco, que é basicamente sobre coisas que não se veem mas são muito importantes: medo, amor, superação, desconforto… É um disco que fala da minha relação comigo própria e com os outros.
E porquê a decisão de escrever todas as canções em português [Human, o primeiro álbum de Isaura, era todo em inglês]? Era mais fácil, assim, dar palavras a essas coisas invisíveis?
Sem dúvida. É a minha língua, aquela em que me expresso melhor. Não consigo imaginar este disco doutra maneira e adorei fazê-lo em português. Foi a abordagem certa. No fundo, o português é a língua em que eu sinto, quando tenho medo, quando gosto de alguém… Logo de início, tenho de saber se vou fazer uma canção em português ou em inglês. Muda tudo: a métrica e a entoação são completamente diferentes. Não são traduzíveis, a canção ou nasce numa língua ou noutra. E depois de tudo o que tinha vivido, senti que esta era a única forma de contar o que precisava de contar. Isto não significa que passe a escrever só em português daqui para a frente.
Continua a dividir a sua vida profissional entre a música e a área de comunicação de ciência?
Sim.
O disco
Chegamos ao fim das 12 faixas de Invisível e sentimos que este podia ser outro disco, mais fechado num só estilo. E isso não é um problema, pelo contrário. Há nele pistas que apontam em direções diversas e nos dizem que Isaura tanto pode criar canções pop orelhudas e de mensagem positiva (Só Quero Que te Sintas Bem) como investir na guitarra acústica; tanto pode apostar nos mais acelerados ritmos da música eletrónica (Fora de Pé) como ser cantautora da nova música popular portuguesa (como na belíssima A Noite Não Conta) ou uma hedonista a disparar em direção às pistas de dança… Na verdade, Isaura é tudo isso e não quis deixar nada por experimentar.
A sua luta contra um cancro, aos 30 anos, está presente, muitas vezes de forma clara, em versos como “há qualquer coisa nos medicamentos/ que não me deixa viver os momentos” (logo na primeira faixa, Olhos em Ti) ou “acordar com medo de dormir para sempre” (A Noite Não Conta). Mas, hoje, Isaura sorri ao pensar em todos os concertos e discos que tem para fazer.
Também porque viver da música em Portugal é difícil?
Para poder viver da música, tinha de aceitar uma série de regras e compromissos… Estar disposta a fazer algumas cedências. E não estou. O facto de ter um trabalho que não é na música foi a estratégia que arranjei para não ter de fazer compromissos na arte. Quero fazer as canções como as imagino. Algumas são muito estranhas, sei que não vão passar nas rádios… Vivo bem com isso; a liberdade artística, para mim, é mais importante. Posso, um dia, viver da música, não digo que não. Sinto-me, por exemplo, cada vez mais preparada para escrever para outros artistas.
Na sua carreira, há uma inversão curiosa em relação ao que acontecia normalmente. Editou o primeiro álbum numa grande editora, a Universal, e agora é que faz uma edição independente…
O meu primeiro EP, Serendipity, fi-lo sozinha e, depois, editei-o pela NOS Discos. A seguir, fiz o Human e o EP Agosto, em português, na Universal. E, agora, voltei a fazer este disco sozinha. Sinto que isso também tem que ver com a minha personalidade. Quando faço parte duma equipa, inevitavelmente sinto-me comprometida com ela e com os seus objetivos. Se estiver numa major, a minha atitude é facilmente “bora lá tornar isto mais mainstream, tentar chegar a um público maior!”. O sucesso numa major significa vender mais. Mas a verdade é que não é isso que eu quero fazer. Essas cedências têm um custo artístico, consequências… Para mim, não pode ser esse o fio condutor. Claro que quero que as minhas canções arranjem o seu espacinho; sinto que existe público para elas e algumas até têm tudo para estar nas rádios mainstream… Sou muito eclética, e neste disco acho que se nota bem isso; vou a muitos sítios.
Em Invisível, há faixas muito diferentes. Umas podem fazer pensar em Billie Eilish ou Beyoncé (Fora de Pé, por exemplo) e outras, mais na renovação da música popular portuguesa (A Noite Não Conta). A Isaura é uma artista à procura do seu caminho?
Não me sinto a experimentar caminhos. Sei que tenho essas vertentes todas dentro de mim. Pensei muito sobre esse tópico e falei muito sobre isso com o meu produtor. Digamos que a Isaura tem sete cores, e eu, às vezes, escolhia só duas ou três, para não criar confusão… Mas, na verdade, sempre achei que era possível ir às cores todas e as coisas fazerem sentido. Essa mistura, neste disco, é deliberada. Eu sou tudo isto.
Até a voz, e o modo de cantar, é diferente em A Noite Não Conta…
Isso tem outra explicação. Esse refrão nasceu para outra artista. Quando o fiz, não era para mim. Depois, acabou por não avançar, ficou em standby, e eu pensei “mas isto que escrevi é sobre mim…”. Acrescentei o resto da letra, coisas de que me faltava falar, e recuperei-a para mim. Isso explica que a cante um bocadinho à fado. Este disco partiu muito da ideia de não fazer grandes planos preestabelecidos e de não me limitar. E, agora, estou com muita vontade de o levar para os palcos. Sinto-me com muita energia.