Os enigmas são boas portas de entrada para descobertas. E Julian Barnes, autor de prosa elegantíssima, capaz de destilar bibliotecas inteiras num par de capítulos, ganhador de prémios com notáveis romances como O Papagaio de Flaubert ou O Sentido do Fim, transmutou-se, aqui, em decifrador – de um homem, de uma época, das ligações que os (des)unem misteriosamente.

Numa parede da National Portrait Gallery, o britânico encontrou uma obra de John Singer Sargent, Dr. Pozzi at Home (1881), opulento retrato de um belo desconhecido, envolto num casaco-roupão rubro, com uma borla pendurada como um “vergalho de touro”.
A curiosidade conduziu-o ao puzzle literário de onde emerge Samuel Jean de Pozzi (1846-1918), luminária dos salões de 1900, cientista e médico ginecologista que contribuiu com grandes avanços na área (graças a ele, lê-se, muitos quistos foram retirados sem sofrimento inútil às damas da época), darwinista, libertário, anglófilo, “quase um dândi”. Um plebeu descendente de comerciantes burgueses italianos que construiu amizades com “aristocratas de tendências helénicas”, sintonizou-se com transgressores como Oscar Wilde e é citado por poetas parnasianos.
Julian Barnes assume as omissões de qualquer biografia, admite até uma intolerância contemporânea: Pozzi era irremediavelmente infiel à esposa provinciana e milionária, um pai adorado mas não perdoado pela filha Catherine, um casanova que colecionou casos com Sarah Bernhardt e outros cisnes que eram também suas doentes (sem que haja uma “única notícia registada de qualquer queixa feminina contra ele”). A “loucura estética”, a decadência, as mil histórias em que Paris arde e Londres se agita são matéria fascinante. Príncipes, polémicas, pintores com gardénias nas botoeiras, boémios, snobes, amantes, escândalos, causas, livros malditos, o caso Dreyfus, tudo isso habita este fresco da Belle Époque, belíssima jangada literária.