A fábula do Doutor Fausto é conhecida − a história do cientista que criou um pacto com o diabo, vendendo-lhe a alma, sendo depois enganado pelo demónio mefistofélico − e teve muitas declinações, incluindo as de Goethe, Pessoa ou Thomas Mann. É igualmente uma metáfora que Shoshana Zuboff usa para dissecar neste volume, soberbo e fundamentado, os efeitos do “capitalismo de vigilância”. Isto é, um termo por ela cunhado para descrever a manipulação digital dos indivíduos, fenómeno que transformou os “utilizadores” na verdadeira matéria-prima de uma nova ordem económica – um minério abundante feito daquilo a que chama “excedente comportamental” (toda a informação abundante capturada digitalmente) que é abusivamente usado por empresas (como Google, Facebook ou Apple…), instituições e até governos. Para quê? Não só para criar “produtos preditivos” (aqueles que vamos desejar no futuro) como para gerar poder de “instrumentismo” (moldar e modificar o comportamento dos utilizadores para garantir certos funcionamentos do mercado ou até vontades de governos…).

É uma distopia já em marcha. Se uma empresa conhece os seus horários, amigos, gostos, hábitos, quantos quilómetros corre por dia, quando liga a máquina de lavar, o que lê, vê, ouve e quem ouve, nada a impede de o “empurrar”, de o condicionar para determinadas escolhas, consumos, ideias… E somos todos Faustos quando, para obter uma internet mais rápida ou acessos privilegiados (ou até mesmo serviços básicos), aceitamos os chamados “termos de utilização do serviço”, “políticas de privacidade”, “acordos de licenciamento para utilizadores finais”, as sugestões personalizadas, e demais retórica nebulosa apresentada como sendo em nosso benefício. “Os clientes verdadeiros do capitalismo da vigilância são as empresas que intervêm nos mercados de comportamentos futuros. Devido a esta lógica, renovamos diariamente um pacto faustiano à moda do século XXI. ‘Faustiano’ porque não somos praticamente capazes de excluir-nos, embora aquilo que temos de dar em troca destrua a vida que sempre nos foi familiar”, escreve Zuboff. A académica desmistifica ilusões como a “retórica libertadora da internet”, a “moral intrínseca na ‘ligação em rede’” ou a de que “estar-se conectado tende naturalmente para a democratização do conhecimento”. Em nome das próximas gerações, alerta para o facto de que o capitalismo de vigilância é uma “força selvagem”, que faz a “expropriação de direitos humanos fundamentais”, anula o livre-arbítrio e tem “efeitos desastrosos” sobre a democracia e a liberdade. O 1984 orwelliano? Preocupemo-nos antes com o 2024…