Começa, por exemplo, num encontro: como o que Javier Marías descreve em Binóculos Partidos, no bulício das corridas de cavalos. Uma cotovelada quebra o instrumento ótico e faz dois desconhecidos partilharem uns minutos de entusiasmo pelas apostas desportivas e pela vitória de um cavalo chamado Caronte (o nome do barqueiro mitológico que carrega as almas dos recém-falecidos pelo rio Estige acima, punch line metafórica que há de ser airada no fim do conto), mais umas confidências inesperadas: como a de saber que um guarda-costas com gosto indescritível para roupas caras quer sentir-se útil ao ponto de imaginar cometer um atentado contra o rico patrão, mas que, confrontado com a obrigação de agora ter de lhe tratar definitivamente da saúde, não o quer fazer. “Oxalá não venha.” Era um assassino relutante, que “agia com consideração”.
Mas a inquietação de desconhecer o quadro completo, de flutuar entre dúvidas e fantasmas, de ser-se tomado por sentimentos contraditórios e por voyeurismos e por ironias finas como lâminas, de ser-se elegante mas inexoravelmente arrastado para o abismo, de existir ao fim e ao cabo – ingredientes que caracterizam os sofisticados romances do espanhol – dissemina-se neste Não Mais Amores, compilação de 30 contos, escritos ao longo de cerca de três décadas. Como na história dessa mãe que se transfigura em atriz de produções pornográficas por necessidade. Ou a desse ente apaixonado que se questiona se se pode realmente amar sem fotografias da pessoa amada. Ou ainda a da tragicomédia de Ruibérriz de Torres, personagem recorrente de Marías, na rodagem de um filme com Elvis Presley no México.
Um toque de estranheza, uma ponta de onirismo, uma vocação de marionetista exímio que puxa os fios sempre em ligeiro desacerto com as expectativas do leitor? Tudo está aqui, tanto nos contos que não envergonham o autor (aceites), como nos que o envergonham um pouco (os aceitáveis) e até nos que escreveu lá atrás na pré-história da carreira (os inaceitáveis).