O tango nos dá, a todos, um passado imaginário”, disse então Borges (1899-1986). Outras definições foram evocadas, como a do escritor Leopoldo Lugones que, em Historia de Sarmiento, chama o tango “réptil de lupanar”. Fiel ao seu labirinto erudito, o autor de O Aleph e de Ficções conduz-nos, nestas quatro conferências agora reunidas em livro, por vielas e circum-navegações para tentar decifrar a dança saída das “casas más”: “Vi pares de homens a dançar o tango, digamos que o carniceiro, um carroceiro, porventura um deles a dançar com um cravo na orelha, a dançar o tango ao ritmo de um realejo. Porque as mulheres do povo conheciam a raiz infame do tango e não queriam dançá-lo.” Enumera Borges: “Temos, pois, as personagens: temos o compadrito, rufia, temos o menino-bem, patotero, e temos a mulher de má vida, também.” Os cenários? Para ele, vão além das tábuas de salones obscuros: o escritor percorre a história da Argentina desde 1880, as bibliotecas, as histórias dos amigos, Mark Twain e os céus do cometa Halley, os cafés do Japão (onde, a troco de um dólar, se acedia a um auricular em que a maioria escolhia ouvir tango), o mito de Gardel (que tornou o tango “dramático”, coisa de amores desavindos) e até uma sala de tribunal de Cleveland, EUA – em que, conta Borges, um professor de tango foi absolvido de acusações de imoralidade após levar consigo cem discípulos que dançaram em frente ao júri. “Estudar o tango não é inútil; é estudar as diversas vicissitudes da alma argentina.”
Outra coreografia de acasos permitiu conhecer estas conferências inéditas: em 2002, o escritor Bernardo Atxaga recebeu umas cassetes embrulhadas da mão de José Manuel Goikoetxea. Este, ganhara-as do produtor Manuel Román Rivas, que gravou um Borges a contar… e a cantar. Em 2012, María Kodama, viúva de Borges, autenticou a descoberta.