Manguel ascendeu a personagem de si próprio, tal como Borges (para quem foi jovem leitor). Os livros têm-lhe servido de matéria-prima para a construção de uma obra que explora câmaras de ecos, sincronicidades, laços e revoluções na literatura. E todos estes podem ser encontrados na sua própria biblioteca de cerca de 35 mil volumes. “‘Colecionar: impor controlo sobre o insuportável’, diz Ruth Padel. Julgo que isto sempre foi o desejo irrealizado da minha relação com os livros. Presentes, enquanto objetos sólidos, imaginamos que os livros são inertes e passivos, e tão desprovidos de intelecto que nos permitimos investir neles significados de nossa lavra. À pergunta do samaritano, ‘Podem estas pedras viver?’, respondemos ‘sim’ e fazemos dos livros nossos familiares, transformando-os nas presenças entre as quais vivemos. Na minha biblioteca, sentia-me rodeado por esta ‘maioria silenciosa’ (como Homero chamava os mortos), um vasto rebanho de páginas que detinham as chaves do meu passado e as instruções para o meu presente, e também por amuletos úteis aos meus rituais diários.” É o destino incerto da sua última biblioteca que desencadeia esta reflexão, sempre elegante e erudita, estabelecendo fios entre literatura, memória e experiência pessoal; ligando autores e obras, por vezes com séculos de distância.
Antes abrigada num velhíssimo presbitério de pedra, a sul do vale do Loire, numa aldeia com menos de dez casas, onde Manguel viveu 15 anos antes de tornar-se diretor da Biblioteca Nacional da Argentina (cargo também desempenhado por Borges), essa biblioteca está agora empacotada, no Canadá. A partir da experiência de Walter Benjamin, que escreveu um ensaio sobre o desencaixotar dos seus livros, Manguel escreve, em Embalando a Minha Biblioteca, sobre as tumbas de cartão em que os encerrou. E escreve: “Apesar das minhas esperanças, sei que nenhuma biblioteca pode ser plenamente ressuscitada.”