A mitologia do artista miserável fez caminho em épocas passadas. Mas a infância e juventude da pintora colombiana radicada em França, Emma Reyes (1919-2003), apequena esse estereótipo com este seu testemunho, subintitulado Memória por Correspondência, em que dá conta da pobreza em que cresceu.
Emma Reyes não é reconhecível entre os grandes artistas latino-americanos – como Frida Kahlo, Diego Rivera ou Tina Modotti –, mas a sua obra reclama a mesma exuberância visual. Os amigos defenderam que a sua mitologia ensombrou a obra pictórica. “Eu não pinto os meus quadros; escrevo-os”, dizia Emma. Semianalfabeta até aos 18 anos, a artista seguiu a sugestão de Germán Arciniegas: escrever cartas para narrar a dramática infância. É através dessas 23 missivas, enviadas ao longo de quase três décadas (houve um intervalo de 20 anos, pois ela zangou-se com o amigo por este as mostrar a Gabriel García Márquez…), que conhecemos o caminho das pedras: aos cinco anos, Emma vive num quartinho sem janelas em Bogotá, com a irmã Helena, o meio-irmão Eduardo e uma adulta de melena negra assustadora, María – a mãe. Chora de fome, muitas vezes. A sua única alegria, conta, é quando brinca na rua, entre o lixo. Depois, irá para Guateque, tempo de descobertas – dinheiro, música, a visão ribombante do primeiro carro… A felicidade dura pouco: Emma e Helena serão abandonadas no convento das filhas de Maria Auxiliadora, num quotidiano de escravas nas cozinhas, submetidas ao inferno apenas colmatado pela bondade do “padre giro”. Um dia, Emma agarra nas chaves do portão e foge: “Apercebi-me de que há muito tempo que já não era uma menina.”
Memória por Correspondência (Quetzal, 256 págs., €16,81) reúne o conjunto de 23 cartas que a artista escreveu a um amigo, o historiador Germán Arciniegas, entre 1969 e 1997.