Fácil seria jogar com os nomes das canções que já lhe reservaram lugar cativo na história da música popular portuguesa. Dizer que Coração Mais Que Perfeito dá várias voltas ao universo dos temas fortes de Sérgio Godinho seria por certo redutor. Poderia dizer-se que se cruzam A Noite Passada, A Balada da Rita (numa fase da vida da personagem), Etelvina ou O Primeiro Dia numa prosa burilada e feita para ler, não para cantar.
No centro desta estreia no romance, o autor arrisca-se por terrenos difíceis. Desde logo porque é uma mulher, Eugénia, que está no centro desta aventura literária e é da vida quotidiana que se faz a sua epopeia. E vai acontecer-lhe de tudo: precocidades amorosas, lutos também precoces, um grande amor trágico que ela recicla (ou, melhor, faz ressuscitar) de uma forma poética e intensamente simbólica. Fica a promessa de não revelarmos aqui a solução da protagonista para o luto do seu grande amor, mas sempre dizemos que tem, literalmente, a ver com o coração que dá nome ao livro.
Da pena de Sérgio Godinho, experiente na construção de letras para canções, podem ler-se rasgos de alto calibre. “Não tinham de ter os mesmos gostos – e não tinham – nem de praticar a harmonia, o bicho enganador que rói e corrói a vida de um casal”, escreve a propósito do encontro de Eugénia com o outro protagonista, Artur, um ator. “Detestava aqueles casalinhos que entornavam por osmose a atraente poção da consonância pela goela abaixo”.
O estilo da lírica está lá, intacto. Aliás, muitas impressões da protagonista são repetidas como refrões. Os encontros e desencontros que Eugénia tem com a vida levam-nos a perceber que esta história só poderia ter saído da cabeça – e do coração – de Sérgio Godinho. Afinal, a vida é feita de pequenos tudos.
Coração Mais Que Perfeito (Quetzal, 248 págs., €16,60) centra-se na vida de Eugénia, uma mulher a quem acontece (quase) tudo. O escritor de canções já se tinha estreado na prosa literária com o livro de contos Vidadupla, em 2014.