Já muito se disse sobre Elena Ferrante, e nem sempre, se adotarmos a perspetiva da escritora, pelos melhores motivos: são muitos mais os que perguntam “quem é ela, afinal?” do que os que discutem livros como Um Estranho Amor ou a mais recente tetralogia A Amiga Genial. Seja como for, têm sido mesmo muitos os que a leem sem ser a reboque das inquietações mediáticas sobre a sua identidade.
Em outubro, porém, o jornalista italiano Claudio Gatti estragou o segredo, e ainda por cima a partir de fontes demasiado prosaicas para a aura criada por Ferrante. Com base nos recibos de pagamentos de direitos de autor e afins, Gatti disse que se trata de Anita Raja, tradutora e residente em Roma.
Mais do que a reação revoltada de muitos fãs, dentro e fora da sua Itália natal, a resposta a esta brecha na vontade de anonimato da escritora pode encontrar-se numa das cartas de Ferrante a um dos muitos jornalistas que a tentaram entrevistar e que se publica em Escombros: “O que constitui notícia é que um nome capaz de dizer alguma coisa às redações tenha assinado um livro qualquer? Eu penso que a boa notícia é sempre esta: saiu um livro que vale a pena ler.”
É sobretudo dos temas que a inquietam, das suas personagens e gostos literários, sempre com a memória de Nápoles (cidade onde a escritora nasceu e cresceu e que trata como um organismo vivo na sua obra) como cenário, que nos fala este livro, muito mais revelador do que uma investigação jornalística baseada em royalties.
À medida que avançamos na leitura, podemos ver como Ferrante se desinibe gradualmente e, pelo menos, começa a responder às cartas que lhe são endereçadas. Há também uma tensão constante entre o desejo dos editores, Sandra Ozzola e Sandro Ferri, de a promoverem e o seu desejo quase obsessivo de se manter em palco mas atrás do pano. Ferrante revela-se, num mundo de pós-privacidade, pós-verdade e de uma narcísica ânsia de selfies, como uma resistente.
Escombros (Relógio D’Água, 376 págs., €17) é uma recolha de textos dispersos, sobretudo cartas e correspondência trocada nos últimos 25 anos, que dão a conhecer as inquietações da escritora perante o seu público e os meios de comunicação, mas também o seu amor pela obra de Elsa Morante, pela sua Nápoles natal e pela mitologia clássica greco-latina