
Apologia do Ócio, de Robert Louis Stevenson
“Nos dias de hoje, quando todos sentimos a obrigação, sob pena de nos vermos condenados in absentia pelo delito de lesa-respeitabilidade, de laborar em alguma atividade lucrativa com um zelo próximo do entusiasmo, qualquer clamor da fação oposta, dos que se contentam com o suficiente e preferem ficar à parte a observar, terá sempre o seu quê de fanfarronice.” Robert Louis Stevenson (1850-1894) escreveu estas palavras em 1877, antes de downsizing ser uma nova entrada no dicionário e do século XXI defraudar visões futuristas sobre populações mais libertas do trabalho. Mesmo em época estival, há que mostrar, hoje, produtividade, proatividade, taxa de divertimento elevada… Os flâneurs que se cuidem, a vida está em regime de tolerância zero. Sugira-se a cura oferecida por dois ensaios, escritos pelo autor dos clássicos A Ilha do Tesouro e O Médico e o Monstro (traduzidos por Rogério Casanova). Stevenson sempre praticou uma higiene existencial – viver o mundo para contá-lo. No ensaio-título, ele desfaz equívocos com raízes fundas, como os de confundir ócio com preguiça ou parasitismo. “O chamado ócio, que não consiste em não fazer nada mas sim em fazer muitas das coisas não reconhecidas pelas formulações da classe dominante, tem tanto direito a afirmar a sua posição como o próprio trabalho”, diz, apesar da inveja dos que continuam na “grande corrida dos vinténs”. Aqui, defende-se a ociosidade como escola de vida fora dos corredores académicos, um “afundar numa corrente de pensamentos gentis” que dá saúde ao espírito, uma curiosidade que distingue das pessoas “vulgares e quase-mortas”. Um “cavalheiro atarefado”, semeia “urgência e colhe indigestões”, mas “um homem ou mulher feliz é uma descoberta mais afortunada do que uma nota de cinco.” O manifesto instiga conversões tranquilas, consciência picada como a pele pelo sol. E amplia-se com A conversa e os conversadores: “Não existe ambição mais razoável que a de nos notabilizarmos na arte da boa conversa.” Está tudo dito (Antígona, 88 págs., €12).

Manual para Mulheres de Limpeza, de Lucia Berlin
“Sempre acreditei que os melhores autores vêm ao de cima, como as natas, mais tarde ou mais cedo”. Quem o diz é a escritora Lydia Davis, não sobre os seus livros, sobejamente divulgados, mas sobre aquele que considera ser um dos segredos mais bem guardados da literatura norte-americana: a obra de Lucia Berlin (1936-2004), autora de seis livros de contos, publicados em médias e cada vez mais pequenas editoras. Tem ressurgido agora, em vários países, com esta antologia que recolhe o melhor das suas histórias curtas. E Lydia Davis, no prefácio, não engana: estes contos são mesmo “elétricos” e “zumbem e crepitam quando os fios descarnados se tocam”. Manual para Mulheres de Limpeza (Alfaguara, 528 págs., €19,90) é uma espécie de autobiografia ficcionada, literatura que se alimenta da vida e que escava o quotidiano para lhe encontrar um sentido. De mulher a dias a enfermeira, de telefonista a professora e de casamento em casamento, Lucia Berlin andou pelos Estados Unidos e pelo México fora, com quatro filhos e muitas dúvidas. Algumas acabaram no fundo de uma garrafa, outras deram origem a histórias pungentes e sangradas.

Macaco Infinito, de Manuel Jorge Marmelo
Uma boa metáfora que nos obriga a ver de novo e a olhar para a realidade a partir de outro ponto de vista. Eis o exercício do novo romance de Manuel Jorge Marmelo, Macaco Infinito (Quetzal, 200 págs., €16,60), que transforma a Europa num bordel esconso e cercado por muros. Com empresários pouco atentos ao sofrimento alheio, emigração ilegal, exploração humana, vidas despedaçadas e realidades camufladas, são inúmeras as analogias que podem ser feitas entre a realidade que a televisão nos mostra e as entrelinhas desta ficção engenhosa e cativante. É um continente posto diante do espelho, numa reflexão sobre o papel do escritor. No Bar Mitzvá, Paulo Piconegro impõe a sua ditadura. Compra pessoas como quem lança os dados. Preso a uma cadeira de rodas, é imóvel nos seus sentimentos. E entre as suas muitas crueldades sobressai a obsessão em verificar a fiabilidade do teorema atribuído a Charles Darwin que dá título ao romance. Segundo este paradoxo, se se puser um macaco diante de uma máquina de escrever por um período infinito de tempo ele acabará por escrever qualquer coisa equivalente a uma obra de Shakespeare. Essa missão está entregue a Abdul Majeed Wakaso, que atravessou África em busca do sonho europeu e se afogou na ganância dos homens. É o Sísifo desta história, a sombra humana condenada a repetir todos os dias os mesmos gestos e a amassar as mesmas teclas. Será, enfim, a metáfora do escritor diante da realidade, condenado a tomar partido. Como o leitor.

Espanha, de Jan Morris
O aviso à navegação é feito no prefácio: “O tempo é um soberano absoluto”, recorda Carlos Vaz Marques. É que quando a escritora Jan Morris viajou por terras de Espanha para escrever este livro, ainda Franco estava vivo, Ibiza não se tinha imposto como estância de veraneio, o país estava cheio de clichés dickensianos, e Jan ainda era James (antes da operação de mudança de sexo). “A Espanha de Jan Morris é simultaneamente datada e intemporal”, sublinha o coordenador desta coleção dedicada à viagem. Ou seja, os rios do tempo correm velozes mas há paisagens profundas que perduram. Para um leitor português, Espanha é familiar. Ler este livro, escrito com elegância, atenção às ficções quotidianas, implacabilidade e ironia, é como se estivéssemos no país da infância – a das recordações vividas com pais e avós, quando atravessar a fronteira era uma aventura, e a do imaginário coletivo anterior à Comunidade Europeia. Jan percorreu as várias regiões espanholas, dedicando um capítulo a uma geografia. Sem esquecer a história e a arquitetura, cabem aqui apontamentos populares, saias de folhos e castanholas, o fôlego de Cervantes, as catedrais, o cante jondo, as mulheres de olhos negros, um certo gosto pela pompa, as marcas franquistas. Um postal sobre o Escorial? “Nos intermináveis corredores e pátios sente-se o gosto de Espanha por tudo quanto é grandioso e subjugador, alimentado pelo falso despontar de um apogeu imperial e muitas vezes vulgarizado em estilo bombástico. Na frieza e na desolação deste edifício, consegue detetar-se o estoicismo aristocrático de Espanha, algo de grandiosamente ascético no caráter do país, que muitas vezes o faz parecer transcendente e absorto” (Editora Tinta da China, 248 págs., €18,90).

Onde Todos Observam, de Megan Bradbury
Visitar uma cidade é construir um puzzle, com pedaços de informação, encontros, imagens enquadradas por edifícios… Num surpreendente romance de estreia, esta autora norte-americana arriscou essa estrutura: usa fragmentos de texto, histórias de figuras verídicas, descrições de fotografias reconhecíveis (de Nan Goldin, de Edward Steichen, de Gordon Matta-Clark…) para construir uma declaração de amor a Nova Iorque. Os capítulos, curtos, de Onde todos Observam (Elsinore, 286 págs.,€17,69) recriam história, efervescência, e malha urbana da Grande Maçã. Em boas companhias: o fotógrafo Robert Mapplethorpe, em 1967; o poeta Walt Whitman, em 1891; o engenheiro Robert Moses que mudará a silhueta de Manhattan, em 1922; e o escritor Edmund White, em 2013, habitam estas páginas. Tal como o filme de Woody Allen, esta é uma sinfonia literária, marcante, para Manhattan.

O Silêncio do Mar, de Yrsa Sigurdardóttir
Não há crise que não acabe em bons romances. Aos poucos, a queda de três bancos que abalou a Islândia, em 2008, começa a fazer o seu caminho na literatura do país. Por se tratar de alta finança, falências históricas e de tragédias pessoais, o caso só podia envolver crimes, advogados e investigações. E eis que chegamos a O Silêncio do Mar (Quetzal, 448 págs., €18,80), o novo romance de Yrsa Sigurdardóttir, um dos nomes forte da onda de policiais nórdicos que há vários anos agita o mar de leituras de todo o mundo. O talento da escritora nascida em Reiquiavique, em 1963, e já com seis títulos publicados em Portugal, tem sido o de conjugar, num enredo empolgante, a atualidade da Islândia, a sua geografia, lendas e mistérios. Igualmente cativante é Thóra Gudmundsdóttir, a advogada encarregue de deslindar os mistérios locais, ela que vive os sobressaltos de uma vida amorosa que teima em assentar. Agora tem pela frente um iate que, tendo partido de Lisboa, embate violentamente contra a doca do porto da capital islandesa. Lá dentro, sete tripulantes desaparecidas. E no banco do proprietário muitas dívidas e empréstimos por pagar. Entre a hipótese de morte e de fuga desenrola-se uma realidade cheia de aparências, segredos e seguros de vida.

Água, de João Paulo Borges Coelho
Não será exagero dizer que no novo romance do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho encontramos o primeiro telemóvel convertido em personagem literária. Não fala, claro, nem age por si só, mas ganha tamanha dimensão na narrativa, e a sua existência e interação com os demais está de tal forma bem descrita, que o estatuto não lhe fica mal. Em Água. Uma Novela Rural (Caminho, 376 págs., €19,90) o telemóvel é o símbolo de uma ruralidade acossada pela tecnologia e abalada pela tradição, que já não tem respostas para a inclemência da natureza. A sabedoria antiga não consegue explicar a alternância de cheias e secas, nem os equívocos que um telefonema é capaz de causar. Com humor e ironia, Borges Coelho expõe as contradições da modernização do interior africano, onde se constroem pontes sobre rios secos e se quebram velhos caminhos, rumo ao desconhecido.
