Ele tem “sangue de chacareiro”, e é isso que o faz perceber, ainda sentado no terraço e no conforto civilizado do pequeno-almoço, servido pela mulata Dona Mariana, envergonhada perante os sinais evidentes da cama de amantes acabada de desfazer, os danos no jardim: um rombo na sua cerca-viva. Uma coisa de nada, evento microscópico, que lhe faz ferver o sangue, “tremendo e espumando”, e o devolve à roupa do rural acomodado cujos inimigos ancestrais estão, não na ditadura dos anos 1970 vivida lá fora, mas nas hostes naturais, logo convocado para a guerra ao observar o estrago causado pelas formigas, esse exército eficiente e resistente a panelões de venenos. Ali está o seu mundo invadido, “tanta trabalheira pra que as saúvas metessem vira-e-mexe a fuça”. A fúria tem platéia: ela, a mulher com quem viveu uma noite de sexo arrebatado, dois capítulos descritos com um erotismo pungente que arruma a um canto candidatas a 30 sombras de gray ou coisa parecida. Ela, “a claridade do dia lhe devolvendo com rapidez a desenvoltura de femeazinha emancipada”, cigarro na mão, suscitando-lhe a vontade de “espremer o grão do seu sarcasmo”. É que perante a invasão movida a centenas de patas e antenas, “alguém tinha de pagar, alguém tem sempre de pagar queira ou não, era esse um dos axiomas da vida”. As restantes páginas do livro serão um incêndio de insultos e argumentos, choque entre gerações e ideologias (ou falta delas), demonstração da destruição latente no amor.
Um Copo de Cólera é um teatro concentracionário, discussão conjugal entre um homem, maduro e comodista, e a jovem amante, jornalista cheia de convições – apenas isto, uma pedra (preciosa). Escrita em 1970, publicada em 1978, a novela mantêm um vigor intemporal, uma linguagem veloz, ferina e sem cerimónias que leva o leitor de roldão até ao capítulo final, circular e redentor. Uma estrepitosa cerimónia do adeus, que agora conhece nova edição, depois de ter sido publicada pela Relógio D’Água, em 1998.
Um Copo de Cólera (Companhia das Letras, 120 págs., €13,50) integra o currículo esparso do autor brasileiro: três livros publicados ao todo, entre 1975 e 1997.