Sentir-se numa lamela de laboratório, escrutinado e cutucado em áreas emocionais recônditas, quando se lê um romance do espanhol Javier Marías, autor dos já traduzidos Os Enamoramentos, Amanhã na Batalha Pensa em Mim, e Coração tão Branco, é ocorrência de elevadíssimas probabilidades. A escrita do autor madrileno, que conta com seis milhões de exemplares vendidos pelo mundo (desconcertante, isto de histórias tão íntimas poderem ser “cintadas” com números tão avantajados) e uma legião de fiéis, é uma torrente desconcertante, marcada por engenho, argúcia, compaixão, sentido de humor, lucidez. A sua escrita é elegante, mas imprevisível. Os seus personagens são, por vezes, crianças desorientadas, à mercê das paixões, físicas e intelectuais. E Marías é o seu pastor. “O passado não conta, é tempo expirado e negado, é tempo de erro ou de ingenuidade e insipiência e acaba sempre por ser tempo digno de lástima; a posteriori, aquilo que o invalida e envolve é esta ideia: ‘Como sabíamos pouco, que tontos fomos, que inocentes, ignorávamos aquilo que nos aguardava e agora já sabemos’”, lê-se em Assim Começa o Mal, romance sobre o tempo e a vida – sobre a forma como o tempo condiciona a vida, e como a vida é o tempo irreversível que passou. No “país subjugado” que era Espanha nos anos 80, com a movida a bater à porta e os velhos costumes do franquismo ainda agarrados aos cantos, acende-se um rastilho na casa de Eduardo Muriel. Cineasta respeitado, figura de pala no olho (em terra de cegos…), enredado num mau casamento com Beatriz (o divórcio não era permitido), encarrega de tarefas menos transparentes o secretário, Juan de Vere (que, crente no absolutismo da verdade, típico da juventude, adverte-se, procurará ver tudo, para inquietação sua e dos demais…). A investigação destapa segredos, sexo, mentiras e cartas. A implosão doméstica reflete a tensão por explodir na própria sociedade espanhola: enfrentar o passado é necessário, evitar o mal em suma. Ainda que a história se repita, descobrirá um Vere na meia-idade: “O passado tem um futuro com o qual nunca contamos.”
Assim Começa o Mal (Alfaguara, 536 págs., €21,90) é o último livro de Javier Marías, nome fundamental da literatura contemporânea, com 12 romances publicados e traduções em 40 idiomas