‘Uma coisa bela é uma alegria que dura para sempre.” O verso do poeta inglês John Keats parece ecoar pelo Museu das Marionetas do Porto. “Saudade”. “Orgulho”. “Arrepio”.
“Vaidade”. Os sentimentos do elenco e da direção do Teatro Marionetas do Porto (TMP) agigantam-se com o concretizar do sonho do fundador, João Paulo Seara Cardoso, desaparecido em 2010. Durante anos, mais de um milhar de objetos de antigas produções da companhia avolumaram-se nos seus armazéns. Agora, desempoeirados, ganham um novo sopro de vida.
Por momentos, respondendo ao nosso pedido, recria-se aquele momento mágico e ilusório em que os bonecos e os seus manipuladores se tornam unos. O Corvo de Polegarzinho enrola-se à volta do braço de Edgard Fernandes como uma hera. O Pinguim Matias da História da Praia Grande encaixa-se nas mãos de Sara Henriques.
Pat, o coelho jardineiro de Wonderland reanima-se com a presença de Rui Queiroz de Matos. A velha copofónica de Boca-de-Cena ganha voz com Shirley Resende.
Terá sido esta personagem, em tempos, a protagonizar uma tentativa de suicídio em cena. Falhada, porque “as marionetas não morrem”, dizia Seara Cardoso.
Estas são algumas das estrelas que animam o novo museu e ilustram a procura constante de novas formas de conceção de marionetas, sem fios, que sempre foi apanágio da companhia. Dos primórdios dos populares Dom Robertos, recuperando a tradição dos mestres bonecreiros portugueses, ao experimentalismo de criações como Hamlet, a cada passo verificamos a recusa da repetição de fórmulas de sucesso.
E foram muitas. Um dos primeiros êxitos de bilheteiras, Vai no Batalha (1993), é paradigmático. Com uma carga política fortíssima, reagia ao facto do teatro de revista se ter instituído, à época, como uma espécie de teatro nacional obrigatório. Os cenários acabaram destruídos por Seara Cardoso, ao verificar que a intenção crítica com que tinha construído o espetáculo estava a ser subvertida, transformando-se em mero divertimento. Salvaram-se, felizmente, as marionetas agora expostas, onde se reconhecem as caras, por exemplo, de Filipe La Féria, Mário Soares e Pedro Santana Lopes.
ASSUMIR RISCOS
“Estou aqui há tantos anos e cada espetáculo é o início de uma nova etapa.” A frase é de Edgard Fernandes mas foi repetida, por outras palavras, pelo restante elenco do TMP. Todos foram alunos do curso de artes do espetáculo do Balleteatro Escola Profissional, onde João Paulo lecionava.
“Os bons alunos que saíam da escola e conseguiam dar resposta a varias solicitações acabavam por fazer estágio na companhia”, conta Isabel Barros, fundadora do Balleteatro e atual diretora artística do TMP. Todos descobriram o mundo de possibilidades do teatro de marionetas com a companhia portuense. “Há a preocupação de encontrar sempre novas fórmulas técnicas, plásticas, estéticas e de interpretação.
E isso é particularmente interessante”, afirma Sara Henriques, na companhia desde 2003. A versatilidade dos intérpretes, à vontade no teatro, na dança, no canto e na manipulação, marcou as produções.
“Foram 25 anos de trabalho sistemático, de muito rigor e detalhe. Criou-se uma geração de marionetistas e de atores com competências extraordinárias”, sustenta Isabel Barros. As primeiras colaborações de Shirley Resende com o TMP foram como instrumentista, desdobrando-se entre o piano, o órgão e o acordeão. A criação musical ocupava um lugar de destaque nos espetáculos e afinava pelo inconformismo.
“Toquei como nunca tinha tocado na vida.” Aos poucos, foi entrando em cena e encarnando algumas personagens, até chegar à manipulação. “Foi um processo bastante natural. Tenho formação como atriz, via os ensaios e queria estar do outro lado.” Todos os atores agradecem o resgate das marionetas das caixas de cartão onde estavam confinadas. “Gosto de as contemplar, enquanto simples espetadora, mas também sabendo qual a energia de cada uma, algo que guardo cá dentro”, diz Sara Henriques.
A aquisição mais recente do elenco, Rui Queiroz de Matos, fala “de uma relação quase amorosa com o objeto, um bocadinho esquizofrénica, em que este se torna a extensão do Eu.”
JOGO DE ILUSÕES
Nos bastidores, Rui Pedro Rodrigues assistiu a muitos momentos mágicos. Convidado a trabalhar na construção das marionetas e no desenho de luz e de som dos espetáculos do TMP, atraiu-lhe fabricar ilusões com os objetos de cena. “Era sempre um desafio muito gratificante, naquele atelier brincávamos a sério”, recorda.
As suas mãos tinham a responsabilidade de passar de duas para três dimensões as visões de ilustradores e escultores que colaboravam regularmente com a companhia. Os desafios de engenharia na concretização dos elementos de cena, partilhados com João Paulo, eram uma constante.
No museu, é possível observar os pormenores da riqueza plástica das criações, tanto para adultos como para crianças todos os anos, uma nova produção é estreada para cada um dos públicos. A tentação de tocar nos bonecos de Cinderela e de Bichos do Bosque reproduções fiéis das ilustrações de João Vaz de Carvalho e de Júlio Vanzeler, respetivamente é quase irresistível.
“Não queremos um museu estático”, defende Isabel Barros. Os passos após a inauguração são, contudo, ainda incertos. Nos planos estão, por exemplo, visitas guiadas feitas pelos atores (com demonstrações das técnicas de manipulação das marionetas), leituras encenadas ou conversas com criadores de outras áreas artísticas. “Estamos a trabalhar sem rede. Arriscamos ao máximo ao abrir portas, não sabemos o que nos espera.” Contam, para já, com o apoio da Fundação da Juventude para a realização de projetos de animação do espaço público. E vários espetáculos serão repostos ao longo de 2013, no Porto e não só.
Para as obras de recuperação deste antigo edifício na Rua das Flores não conseguiram apoios de qualquer tipo. O arrendamento tinha sido feito há 10 anos e os mecenas nunca apareceram. A localização do prédio obedecia à vontade do fundador de abastecer esta zona histórica de equipamentos culturais, onde outrora tinham instalado o Teatro de Belomonte, sede da companhia. O projeto de reabilitação coube, mais uma vez, ao arquiteto José Gigante, que de um miolo em ruínas soube erguer um espaço de leveza e de luz.
The show must go on… a frase batida do mundo do espetáculo aplica-se ao percurso do Teatro de Marionetas do Porto. “Quando o João Paulo morreu, estávamos em plena montagem do Frágil e fomos interrompidos pela fragilidade da vida. Nesse momento, ninguém deixou cair os braços”, recorda Isabel Barros. “O facto de termos de resolver e de terminar o espetáculo, deu um sentido e uma força gigante. Perdemos o João Paulo, mas temos tudo connosco. A companhia tem a mesma aura e ele continua a ser uma referência para todos.” Afinal, as marionetas nunca morrem.
EPISÓDIOS MEMORÁVEIS
MISÉRIA (1991) Baseado num conto popular, o texto de Álvaro de Magalhães fala-nos da história de um velho ferreiro que consegue enganar a morte e é condenado à eternidade. João Paulo Seara Cardoso dava vida às marionetas, com magia e humor, e concretizava uma experiência encantatória, bem acolhida pelo público e pela crítica. Foi com este espetáculo que a companhia estreou o Teatro de Belomonte.
NADA OU O SILÊNCIO DE BECKETT (1999) A versatilidade da companhia provou-se, mais uma vez, com um espetáculo que explorava o universo do escritor irlandês contemporâneo e vincava a linguagem poética e imagética do TMP. As marionetas e os figurinos foram desenhados por Júlio Vanzeler, um colaborador habitual. Esta foi a produção que mais vezes se apresentou no estrangeiro.
MACBETH (2001) A revisitação do clássico de Shakespeare foi um sucesso junto do público e da crítica, assente também em inovadores modos de manipulação das marionetas, constantemente procurados pela companhia.
COMO UM CARROSSEL À VOLTA DO SOL (2006) O espetáculo infantil, com texto original de J.P. Seara Cardoso, conta a história do crescimento de um menino e do seu espanto pelas coisas que o rodeiam.
CABARET MOLOTOV (2007) Trabalho de experimentação em que levaram o modo de fazer teatro da companhia ao encontro de uma poética associada ao circo e ao cabaret. Feito de diferentes números, demonstrava uma incansável pesquisa de técnicas e linguagens.
BOCA DE CENA: TEATRO-JANTAR (2008) Na comemoração dos 20 anos, propôs-se uma revisitação do passado com uma produção em jeito de celebração, que reunia o lado político, poético e anárquico da companhia. Um jantar performativo, onde quase tudo podia acontecer, numa grande proximidade com o público.
MUSEU DAS MARIONETAS DO PORTO R. das Flores, 22, Porto T. 22 208 33 41 Seg-Sáb 11h-18h ¤2 (3-12, 65-80 anos); ¤4 (12-65 anos) Grátis (menores de 2 e maiores de 80 anos)