Há quem seja incapaz de estar mais do que dez minutos seguidos sentado a trabalhar, quem esteja, literalmente, próximo de adormecer em reuniões pouco interessantes, quem veja um filme, faça scroll down nas rede sociais e deite um olhar a uma revista sem prestar atenção a nenhuma das três atividades.
Depois há os que sonham acordados constantemente, os que se recusam perentoriamente a realizar atividades que implicam planeamento, como a gestão da economia familiar, escolhendo mesmo não querer saber quanto dinheiro têm na conta, e ainda os que se veem obrigados a congelar o cartão de crédito por não conseguir domar uma impulsividade patológica que, às vezes, se traduz também em comentários desapropriados ou nas palavras “sim, vamos”, perante qualquer tipo de programa, qualquer que ele seja.
O dia-a-dia de um adulto com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) nem sempre é tão funcional como deveria ser. E não, esta não é uma doença de crianças, que se cura com a idade, assegura o diretor científico do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (CADin) e investigador da Fundação Champalimaud, Bernardo Barahona Corrêa. “Hoje em dia, sabemos que em mais de metade das pessoas a PHDA entra pela idade adulta adentro. As manifestações clínicas é que se modificam”.
O volume da voz até pode ter baixado, o tempo para se destacarem da realidade e sonharem acordados ter diminuído, as correrias terem deixado de existir, mas, dentro de cada adulto com PHDA há uma inquietação constante, que, tantas vezes, parece impossível de domar.
Hoje em dia, sabemos que, em mais de metade das pessoas, a PHDA entra pela idade adulta adentro
Bernardo Barahona Corrêa – psiquiatra
A culpa é de um neurodesenvolvimento atípico, ou seja, uma maturação cerebral que está atrasada, tanto a nível comportamental como emocional. Bernardo Barahona Corrêa sublinha que a componente emocional é uma das mais desvalorizadas quando se pensa em adultos hiperativos, mas que esta pode representar uma verdadeira prova de fogo na vida dos que sofrem da doença.
Basta pensar que as regiões do cérebro que não estão suficientemente amadurecidas são, não só as responsáveis pelo controlo da atenção e planeamento de ações, mas também as responsáveis pela regulação das emoções e pela supressão da impulsividade, essenciais para a manutenção de relações estáveis e saudáveis tanto a nível laboral como amoroso, familiar ou social.
PHDA ou mera falta de atenção?
Estamos tão familiarizados com estereótipo das criança hiperativa desassossegada que é difícil imaginar como é que esta doença se manifesta num adulto. Como explica Bernardo Barahona Corrêa, a principal manifestação da PHDA, quer nas crianças, mas principalmente nos adultos, é uma falta de atenção transversal a todas as áreas da vida, do trabalho ao lazer, passando pela vida doméstica e familiar.
“Quando dizemos que alguém é simplesmente desatento temos de perceber bem o que é que isso quer dizer”, sublinha o psiquiatra, referindo que é muito diferente estarmos perante uma desatenção focal, apenas numa área ou momento específico, “porque a pessoa está mais cansada ou trabalha demais”, ou assistirmos a uma desatenção permanente, ao longo da vida e em todas as circunstâncias.
“Por exemplo, aquelas pessoas que não conseguem ver um filme ou um jogo de futebol até ao fim, porque, passados dez minutos, têm de se levantar para ir beber um copo de água, e passados 15 pegam no telemóvel e começam à procura de outras coisas, ainda que o filme ou o jogo lhes interesse”. Patológico, é o adjetivo que o médico usa para descrever este tipo de falta de atenção.
Nos adultos, aquilo que fica é, predominantemente, a desatenção. As pessoas sentem-se internamente inquietas, tensas ou irrequietas
BERNARDO BARAHONA CORRÊA – PSIQUIATRA
Enquanto que, na infância, os pais e professores vêm-se a braços com crianças que brincam de forma muito ruidosa, perturbam quem está à sua volta, estão sempre a magoar-se e a partir coisas, agitadas e com comportamentos impulsivos, como interromper constantemente as conversas dos adultos, com o avançar da idade a hiperatividade motora “esvai-se”.
“Nos adultos, aquilo que fica é, predominantemente, a desatenção. As pessoas sentem-se internamente inquietas, tensas ou irrequietas”. Escusado será dizer que tais sintomas surgem frequentemente associados a outras perturbações como a ansiedade e a depressão, o que, por vezes, pode baralhar o diagnóstico. “Num adulto, é muito mais comum ser diagnosticada a ansiedade, em primeiro lugar, e a componente de PHDA escapar”, sublinha Bernardo Barahona Corrêa.
O psiquiatra explica que o facto de um doente chegar à idade adulta com uma PHDA não diagnosticada significa que viveu anos com uma doença que não foi tratada, algo que deixa uma pegada psicológica. “Muitas destas pessoas cresceram sempre aquém das expectativas escolares, foram apontadas pelos outros como chatos faladores ou então como muito cómicos, porque lhes acontecia sempre alguma desgraça divertida”.
Num adulto, é muito mais comum ser diagnosticada a ansiedade, em primeiro lugar, e a componente de PHDA escapar
BERNARDO BARAHONA CORRÊA – PSIQUIATRA
E Bernardo Barahona Corrêa recorda que, mesmo no segundo caso, estas são situações que não ajudam na construção de uma autoestima forte nem fazem com que estes jovens, ao chegarem à idade adulta, se sintam “pessoas eficientes ou capazes de controlar as suas vidas e alcançar os seus objetivos”.
Associada à sensação de insucesso, vem, muitas vezes, a ansiedade, o uso de substâncias como o álcool, o tabaco ou calmantes e, em alguns casos, as drogas de abuso. “Tudo isso é o custo de uma PHDA não tratada e é um custo que se vai acumulando”, alerta o psiquiatra.
Sinais de alerta e principais sintomas
A PHDA é normalmente diagnosticada durante a infância, precisamente por ser mais evidente em questões motoras, insucesso escolar ou na mudança constante de área de estudos. Mas, às vezes, há também casos mais difíceis de detetar: crianças inteligentes, com boas notas, que apanham as coisas rápido, sem serem muito disruptivas na sala de aula, ainda que falem muito e tendam a ser trapalhonas.
“São miúdos onde a aparente facilidade escolar esconde uma alta dificuldade em estarem concentrados, incapazes de se sentarem duas horas a estudar o mesmo assunto e com dificuldade em planear o seu tempo. Têm um problema silencioso do qual ninguém se apercebeu”.
Por esta razão, e também por muitos adolescentes estarem convencidos que a PHDA se cura com a entrada na idade adulta, Bernardo Barahona Corrêa não tem dúvidas de que esta é uma doença “extremamente sub-diagnosticada” nos adultos. Mas, como pode então um adulto perceber se sofre do problema?
“A coisa mais importante é existirem dificuldades transversais a várias áreas da vida, que estejam presentes desde a infância ou adolescência”, afirma Bernando Barahona Corrêa. Estas dificuldades vão desde a incapacidade em organizarem o espaço onde vivem até à dificuldade em estarem atentos, recordarem-se de aspetos básicos do dia-a-dia e controlarem o que dizem, passando pela impaciência e procrastinação constantes.
SINTOMAS E SINAIS DE ALERTA
- Dificuldade em organizar o espaço em que vivem: pessoas cronicamente desarrumadas e que estão sempre a perder coisas de que necessitam
- Dificuldade em planear o tempo: pessoas cronicamente impontuais, que se esquecem de compromissos
- Dificuldade em estar atento: pessoas incapazes de ler um livro até ao fim, que, ao acabar a página têm de voltar ao início porque se distraíram. Pessoas que, em reuniões, perdem sempre o fio à meada e ficam desatentas, com uma propensão incontrolável para sonhar acordadas
- Dificuldade em organizar a vida: pessoas que precisam constantemente da ajuda dos outros para realizarem tarefas básicas da organização do quotidiano, desde lembrarem-se onde deixaram o telefone até ao dia de anos dos pais
- Dificuldade em controlar o que se diz: pessoas que interrompem os outros, irrompem nas conversas falando de assuntos que não têm nada a ver com o que está a ser falado
- Dificuldade em gerir o dinheiro: pessoas que não fazem a menor ideia de quanto dinheiro têm na conta nem quanto é que pagam de luz
- Impaciência: pessoas incapazes de esperar e de fazer coisas aborrecidas, mas necessárias, como a contabilidade do fim do mês, pagar as contas ou tratar de faturas
- Procrastinação: pessoas com tendência para adiar até à última hora as coisas que são vistas como aborrecidas ou como algo que requer um esforço de atenção e concentração. Bernardo Barahona Corrêa assegura que a procrastinação é um dos sintomas mais típicos no adulto com PHDA. “São pessoas que são peritas em fazer coisas pressionadas, no fim do prazo, com um esforço e desgaste muito maiores que impactam a saúde e a vida familiar”.
Para além da Ritalina
Curar a hiperatividade é ainda uma meta distante e Bernardo Barahona Corrêa não acredita que será algo que venha sequer a acontecer. “Penso que o caminho passará mais por conseguirmos identificar as variantes dentro da PHDA, que nos permitirão ter tratamentos mais indicados para este ou para aquele subtipo, mais individualizados”.
Além dos medicamentos estimulantes da atenção utilizados atualmente, como as famosas Ritalina e Concerta, os doentes devem recorrer à psicoterapia se precisarem de tratar outros problemas, como a ansiedade, a depressão ou a dependência de álcool e tabaco, que podem surgir associados à PHDA.
No adulto, é também aconselhável uma intervenção do tipo psicoterapêutico, “mas com contronos de coaching, que seja focada nas dificuldades concretas que cada pessoa sente”, defende Bernardo Barahona Corrêa. “Não chega tratar a PHDA, um adulto tem de aprender, por exemplo, a gerir o seu trabalho, algo que pode nunca ter aprendido por causa da doença”.
Não chega tratar a PHDA, um adulto tem de aprender, por exemplo, a gerir o seu trabalho, algo que pode nunca ter aprendido por causa da doença
BERNARDO BARAHONA CORRÊA – PSIQUIATRA
Além disso, uma meta-análise, publicada, em 2019, na revista Current Psichiatry Reports descobriu que um tratamento alternativo, chamado neurofeedback, parece diminuir os sintomas de PHDA em crianças.
Esta é uma técnica através da qual as pessoas aprendem a modelar a fisiologia do próprio cérebro, observando o seu funcionamento em tempo real. “É uma espécie de fisioterapia ao cérebro para que este possa voltar a trabalhar a um ritmo a que já não estava habituado”, explica Francisco Marques Teixeira, psicólogo na clínica Neurobios e diretor do laboratório MuLabs.
Durante este treino mental, que também pode ser usado noutras doenças como a depressão, um especialista coloca elétrodos na testa do paciente e pede-lhe que responda a alguns estímulos, como bips ou um video-jogo criado especificamente para o efeito, enquanto regista a sua atividade cerebral. O objetivo, no caso da hiperatividade, é aumentar o tempo de atenção. Os especialistas que realizaram o a meta-análise estimam que sejam necessárias entre 30 a 40 sessões.