Numa altura em que se chegou aos 169 casos de hepatite aguda em crianças, 10% deles a precisarem de transplante de fígado, e tendo já havido uma morte a lamentar, os cientistas estão cada vez mais inclinados a apontar o dedo aos adenovírus. E, paralelamente, aos confinamentos relacionados com a pandemia.
Em cima da mesa está a hipótese de infeção por uma estirpe de adenovírus denominada F41. Mas, mais do que a sua especial virulência, os investigadores sublinham o facto de as restrições impostas pela Covid-19 terem poupado as crianças à sua exposição durante os primeiros anos de vida.
Os adenovírus, que habitualmente provocam infeções respiratórias e gastroenterites comuns, podem ter apanhado pela frente sistemas imunitários que não se encontravam prontos a debelá-los. Resultado: chegaram ao fígado e desenvolveram hepatites.
Essa é a “hipótese mais consensual”, disse ao The Telegraph Meera Chand (que dirige a investigação da Agência de Segurança Sanitária do Reino Unido sobre o aumento de casos de hepatite aguda em crianças), durante o Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas, a decorrer em Lisboa desde sábado.
Segundo esta especialista, 75% das 53 crianças que foram diagnosticadas com hepatite aguda no Reino Unido Inglaterra estavam infetadas com um adenovírus. Mais: neste momento, as infeções por adenovírus de crianças inglesas entre os 12 meses e os quatro anos encontra-se nos níveis mais altos de sempre, quando comparamos com os dados dos últimos cinco anos.
“A informação reunida pela nossa investigação sugere de forma crescente que o aumento súbito de casos de hepatite está ligado a infeção por adenovírus”, disse Meera Chand à BBC. “Temos provavelmente um adenovírus normal a circular, mas temos um co-factor que afeta um determinado grupo etário de crianças pequenas, o que está a tornar essa infeção mais grave ou a provocar algum tipo de imunopatologia.”
Citada pelo The Telegraph, esta responsável aproveitou para pedir aos pais e tutores para estarem atentos aos sinais de hepatite, incluindo icterícia, e contactar um profissional de saúde se estiverem preocupados. “Medidas normais de higiene, tais como lavagem completa das mãos e uma boa higiene respiratória, ajudam a reduzir a propagação de muitas infeções comuns, incluindo o adenovírus”, lembrou. “As crianças com sintomas de uma infeção gastrointestinal, incluindo vómitos e diarreia, devem permanecer em casa e não regressar à escola ou ao infantário até 48 horas depois de os sintomas terem cessado.”
A Organização Mundial de Saúde (OMS) descarta, para já, que se possa tratar de efeitos secundários da vacina da covid-19, uma vez que “a larga maioria das crianças afetadas não foi vacinada” e afina pelo mesmo diapasão: “Fatores como suscetibilidade acrescida de crianças pequenas, depois de baixos níveis de circulação no início da pandemia de Covid-19, o possível surgimento de um novo adenovírus, tal como uma co-infeção com SARS-CoV-2 [vinte das crianças doentes tinham sido infetadas com o coronavírus e 19 com SARS-CoV-2 e adenovírus] precisam de ser investigados”, sustentou a OMS, em comunicado.
Este surto levou o Centro Europeu de Doenças Infecciosas (ECDC) a marcar uma reunião para esta quarta-feira. Entretanto, tem estado a monitorizar os casos notificados em vários países e conta publicar na quinta-feira uma avaliação rápida de risco.
Em Portugal, não há nenhum caso registado, mas, mesmo ao lado, em Espanha, houve crianças 13 infetadas – o que atira o país para o segundo lugar dos países com mais casos registados, a seguir ao Reino Unido que tem 114 casos.
Foram já registados 169 casos em doze países, em todo o mundo, entre crianças entre um mês e 16 anos de idade. Até agora, além do Reino Unido e de Espanha, foram também confirmados casos na Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Irlanda, Israel, Itália, Noruega, Países Baixos e Roménia. Sabe-se que, em dez crianças afetadas, uma precisa de um transplante para conter a chamada hepatite fulminante, “como se o fígado fosse destruir-se assim muito rapidamente”, nas palavras de Rui Tato Marinho, responsável pelo Programa Nacional para as Hepatites Virais da DGS.
Desde há uma semana que se regista “um aumento do número de casos”, destacou Rui Tato Marinho à Rádio Renascença, sublinhando que as autoridades portuguesas estão vigilantes. “Estamos todos preparados”, garantiu. “Temos uma excelente rede de pediatria, de medicina geral e familiar, de urgências, os médicos do transplante hepático que se faz em Coimbra, em crianças, também estão preparados, estão em contacto permanente connosco e com as estruturas europeias. Estamos preparados para o que der e vier.”
Recorde-se que os primeiros casos foram identificados nos EUA, num hospital do Alabama, onde em outubro de 2021 deram entrada cinco crianças com lesões no fígado de causa desconhecida. Seis meses depois, a 5 de abril deste ano, a OMS foi notificada sobre cerca de dez casos em crianças na Escócia. Apenas três dias depois, havia um total de 74 casos no Reino Unido.
Segundo a OMS, em 40% dos casos foram detetados infeção por adenovírus. Em 18 das amostras submetidas a testes moleculares, tratava-se do adenovírus do tipo F41 que costuma provocar diarreia, vómitos e febre. Não foi divulgado o país onde morreu recentemente uma criança, vítima desta hepatite aguda.
O último caso conhecido foi registado no Japão. As autoridade de saúde estão a investigar uma hospitalização recente, disse esta terça-feira o porta-voz do Governo japonês, Hirokazu Matsuno, numa conferência de imprensa.
Sabe-se apenas que o paciente japonês tem menos de 16 anos e que o Ministério da Saúde foi notificado pelo hospital no dia 21 de abril. As análises tiveram todas resultado negativo para as hepatites de A a E. O menor não teve de ser sujeito a um transplante de fígado.