Maria João Pinto, 32 anos, chegou a fazer 120 horas extras na primeira fase da pandemia. “Extra”, repete. Está no último dos cinco anos do seu internato em medicina interna no Hospital de Santarém e foi chamada para trabalhar nas enfermarias Covid entre abril e outubro. Não continuou, porque o hospital decidiu reorganizar as equipas, mas a médica permanece na urgência Covid e nas enfermarias dedicadas aos outros doentes. É uma das finalistas do internato e, por isso, é obrigada a fazer o exame final em abril, depois de um ano atípico em que não teve tempo para estudar.
O número de anos do internato varia consoante as especialidades médicas, mas uma coisa é igual para todas: no final, os médicos têm de se apresentar perante um júri, mostrar o seu currículo e fazer uma prova, que só pode ser repetida em caso de reprovação. Sendo que a nota fica para sempre e é a porta de entrada para concorrerem a uma vaga no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Tradicionalmente, este exame é realizado em fevereiro e março. Este ano, de forma excecional, por causa da pandemia, o Governo permitiu que fosse adiado para abril, o que para alguns será suficiente, para outros não. Há quem, tal como Maria João Pinto, tenha dedicado o último ano ao combate à Covid, colocado em segundo plano a sua formação, e pode agora ser prejudicado por isso mesmo.
“No ano que passou não consegui fazer qualquer tipo de apresentação, adiantar o meu relatório, chego a esta altura do campeonato e não sei como vai ser…”, conta à VISÃO. Tem os estágios mínimos concluídos, porque conseguiu terminá-los antes da pandemia, mas o currículo será também motivo de análise e preocupa-a ter-lhe sido retirado um ano. “Nós estamos aqui para ajudar na pandemia, mas é pena o Governo não permitir agora que possamos adiar o nosso exame”, lamenta.
“Eu muito sinceramente não consigo fazer [o exame] em abril…”
Se tiver mesmo de fazer o exame, como é que vai fazer? Maria João fica em silêncio. “Eu muito sinceramente não consigo fazer em abril…”, diz. “Não sei… seria ir a exame sem me ter preparado, porque é preciso muito trabalho. Espero não ter de ir em abril. Com a Covid, não sobra tempo para mais nada”.
A norte, Pedro Marques Pinto, 29 anos, também está em contagem decrescente para o exame final, no seu caso de medicina familiar (quatro anos de especialidade). É de Santo Tirso, mas ficou colocado no Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Marão e Douro Norte, e no último ano o seu foco também tem sido a pandemia, concretamente, o acompanhamento de doentes com Covid-19 através do Trace Covid. Nos picos da infeção, admite, que “não houve formação”, nem tempo “para fazer publicações, participar em congressos, trabalhar no currículo”, tudo elementos que normalmente são tidos em conta para a avaliação. Isto para juntar a sua voz à de Maria João Pinto: “eu acho que o exame devia ser adiado”. “A minha nota vai decidir o sítio onde vou trabalhar”, reforça Pedro Marques Pinto, um dos membros da direção da Associação dos Jovens Médicos.
Ordem defende avaliação faseada e tempo para quem está na linha da frente
Os pedidos da Ordem dos Médicos para que o exame seja adiado têm meses. O processo começou com a especialista em neurorradiologia Catarina Perry de Câmara à frente do Colégio Nacional do Médico Interno, entretanto substituída por Carlos Mendonça – médico interno de Radiologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. À VISÃO, Catarina Perry de Câmara explica que a Ordem propôs ao Governo adiar todos os testes para maio, junho, “porque nessa altura já seria expectável que os números da Covid estivessem a diminuir. Mas o Governo respondeu que tinha de ser até abril por causa de um artigo da lei do Orçamento do Estado, que impede que os exames sejam feitos depois disso”.
“Estão a fazer horas extra, a dar o seu melhor, com dificuldade para estudar, mas, se não forem à prova, podem ser muito prejudicados”
As datas dos exames foram entretanto publicadas em Diário da República, mas o bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, enviou uma carta aberta à Administração Central do Sistema de Saúde a pedir que a autoridade deixasse os colegas a trabalhar na linha da frente da Covid fazer o exame no ano seguinte. Carlos Mendonça indica que, “neste momento, ainda não tivemos resposta a este documento”, relembrando que estes médicos estão “obrigados a ir à primeira época após o fim da sua formação, sob pena de verem os seus contratos cessarem”. “Estão a fazer horas extra, a cansarem-se e a dar o seu melhor, com dificuldades para estudar, mas, se não forem à prova, podem ser muito prejudicados”, continua o atual presidente do Colégio Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos.
Para além da criação deste regime de exceção, Carlos Mendonça defende que os exames possam ser espaçados no tempo, permitindo que quem ficou com a formação em atraso pudesse ganhar mais algum tempo e evitando assim retirar dos hospitais e dos centros de saúde dezenas de especialistas convocados para integrar o júri das provas.
“Temos exames a decorrer durante um mês inteiro e isso implica mobilizar muitas pessoas, dezenas para o júri mais os candidatos. Cada júri é composto por três pessoas – o presidente, um elemento fora do hospital em questão e o orientador do interno -, se pensarmos que, todos os anos, entram em medicina interna à volta de 170/180 pessoas e que cada júri faz seis ou oito exames, estamos a falar de dezenas de profissionais mobilizados em cada uma das especialidades que, neste momento, são muito necessárias no terreno”, aponta o médico.
Abril para quem já está preparado
Em abril, sugere Carlos Mendonça, poderiam avançar os internos que não viram a sua formação tão prejudicada. É o caso de Filipa Costa, 32 anos, e de Carolina Rocha, 32 anos. A primeira está a terminar o internato em cirurgia geral no Hospital de São Francisco Xavier, que pertence ao Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, e a segunda o de Ginecologista e Obstetrícia no Hospital de Santarém. Ambas sofreram as consequências do período conturbado, mas conseguiram preparar-se para o teste final.
“Devia ser dada a opção de adiar o exame para quem achasse que era necessário. Eu não acho que seja unanime a hipótese do adiamento, porque nem todas as especialidades foram afetadas da mesma maneira. Por exemplo, nos hospitais oncológicos, que mantiveram a sua atividade completamente normal por lidarem com doentes prioritários, não se deve ter sentido tanto o impacto da Covid”, diz Filipa Costa, que viu a atividade no bloco operatório diminuir, mas aproveitou para estudar. Tinha os estágios em dia, por isso, viu-se mais prejudicada por não ter conseguido experimentar algumas “cirurgias diferenciadas”, que deixou para o último ano. Ficou escalada para se houvesse necessidade de atender doentes Covid, mas não a chamaram e foi assegurando algumas consultas e as urgências.
Também Carolina Rocha admite que “o adiamento para abril foi suficiente para completar aquilo de que precisava”, ressalvado: “Mas sei de colegas da minha especialidade que não conseguiram”. E para esses considera que devia ser possível adiar o exame que lhes pode definir o emprego futuro.