A cada dia, 17 cidadãos nos EUA morrem à espera de um transplante de órgão. Em 2018, estimava-se que 6 pessoas portugueses morreram por mês nesta situação – situação potencialmente agravada pela pandemia da Covid-19. De forma a dar resposta a esta crise à escala mundial, uma empresa de biotecnologia está a virar-se para uma fonte improvável: os porcos. A United Therapeutics, sediada em Maryland, nos EUA, planeia começar a fazer transplantes de porcos geneticamente modificados para pessoas ainda em 2021.
Durante décadas, os cientistas viveram na expectativa de que os órgãos de outras espécies pudessem substituir os dos humanos – um processo denominado “xenotransplante.” No entanto, os órgãos de animais tendem a desencadear reações imediatas e graves quando são transplantados para um corpo humano. Em 1984, houve um famoso caso de um bebé dos EUA que recebeu um coração de um babuíno, mas que veio a falecer passado um mês porque o seu corpo rejeitou o órgão.
O problema do “alfa-gal”
Face a estas dificuldades, os cientistas da Revivicor, uma empresa subsidiária da United Therapeutics, começaram a dar os primeiros passos para contornar esta rejeição do corpo humano. Em 2003, conseguiram retirar um gene dos porcos que produz um açúcar conhecido como “alfa-gal” – acredita-se que este açúcar, que se encontra na superfície das células dos porcos, é o responsável pela rejeição dos órgãos pelos humanos. “Os humanos têm uma reação imunológica ao açúcar alfa-gal”, explicou David Ayares, chefe científico da empresa, à Future Human.
Anos mais tarde, os investigadores concluíram que este açúcar, que pode ser encontrado no corpo de outros animais que os seres humanos comem, também é responsável por uma alergia pouco comum à carne vermelha. Conhecida como “síndrome de alfa-gal”, esta doença tende a surgir quando um carrapato-estrela, um parasita, transmite alfa-gal para o corpo da pessoa, produzindo uma alergia a carnes como vaca, porco ou cordeiro.
Assim, a modificação operada pela Revivicor eliminar este açúcar da superfície das células dos porcos. Em dezembro, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos EUA declarou estes porcos como seguros para consumo humano. Conhecidos como GalSafe pigs (‘Porcos a salvo de gal’), estes são os primeiros animais geneticamente modificados a ser aprovados ao mesmo tempo para consumo humano e como fonte de potenciais usos terapêuticos. Ayares deixou claro que “o nosso grande objetivo é obter uma fonte ilimitada de órgãos”, não lhe interessando particularmente a produção de carne de porco para consumo não alérgico.
Um período de tempo incerto
Contudo, esta remoção do alfa-gal não é suficiente para compatibilizar os órgãos dos porcos com os corpos humanos. Ao longo da última década, a Revivicor tem feito experiências com outros genes que podem prevenir as respostas imunológicas e outras complicações, como coagulação do sangue. Neste momento, o porco da empresa tem um total de dez modificações genéticas – quatro genes desativados e seis genes humanos adicionados ao seu organismo. Assim, estes porcos altamente modificados serão utilizados em testes com humanos, para verificar a sua compatibilidade.
O período de tempo durante o qual os órgãos de porco durarão no corpo de um humano continua a ser uma incógnita. Em 2016, a Revivicor reportou que conseguiu manter os corações de porcos em babuínos durante dois anos e meio. No entanto, os babuínos mantiveram os seus corações originais: os corações dos porcos foram transplantados para os abdómens dos outros animais. Por sua vez, os rins dos porcos sobreviveram mais de seis meses em macacos.
O objetivo é que o órgão do porco – ou de outro animal – dure até ao final da vida do humano. No entanto, caso tal não seja possível, este processo pode funcionar como uma “ponte” entre manter o paciente vivo e esperar pela disponibilidade de um órgão saudável de outro ser humano.
Planos para o futuro
A United Therapeutics e a Revivicor planeiam iniciar os seus testes para transplantes de porcos para humanos com rins, e apenas depois avançar para transplantes de coração. A razão para tal é o facto de os rins serem os órgãos mais procurados por pacientes nos EUA, com uma fila de espera que pode durar de três a cinco anos. Segundo Ayares, as pessoas ideais para estes testes seriam “pacientes que está na lista de espera para os transplantes de órgãos.”
A Revivicor não é a única empresa que está a apostar neste possível futuro da medicina. A eGenesis, de Boston, assim como a sua parceira chinesa, a Oihan Biotech, estão a utilizar ferramentas de modificação genética para modificar porcos, com o objetivo de utilizar os seus órgãos em pacientes humanos. Por sua vez, a XenaTherapeutics, também de Boston, está a testas a pele dos porcos da Revivicor para tratar lesões causadas por queimaduras – o plano é utilizar as peles dos porcos de forma temporária, até a pele do paciente voltar a crescer.
O transplante de órgãos de porcos para pessoas é arriscado, mas, caso funcione, pode vir a salvar a vida de pacientes que esperam anos por um determinado órgão – desde que não tenham problemas em levar consigo um coração de um porco,