É uma questão de sorte. Ou de azar, dependendo do ângulo em que se vê um problema. No caso de Fátima Abreu, 37 anos e a conviver com o “inimigo” há cinco, tranquiliza-a saber que foi acompanhada no tempo certo. Em agosto de 2015, soube que tinha cancro da mama. Três semanas depois iniciava a quimioterapia, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que concluiu no final desse ano. Por tratar-se de um tumor com forte peso genético, foi submetida a uma cirurgia bilateral em fevereiro de 2016, com reconstrução mamária. Em junho finalizou as 32 sessões de radioterapia. Pensava que a vida ia voltar à desejada normalidade quando foi surpreendida pela alteração dos valores tumorais. “Encontraram um nódulo benigno nos ovários mas, dada a probabilidade de vir a ser maligno, fui aconselhada a remover os ovários, por prevenção”, conta. Seguiu-se nova intervenção, em dezembro: “Fiquei contente por, mais uma vez, ser operada no tempo certo.”

O combate não ficou por aqui. No verão, os exames (PET scan) acusaram uma pequena lesão no fígado. “Esperei três semanas pela biópsia, os resultados vieram três semanas depois”. Um mês e três semanas mais tarde voltaria ao bloco cirúrgico, mas durante esse tempo sentiu “muita ansiedade e stresse” e, como se não bastasse, lida agora com o facto de ter uma metástase no fígado. “É complicado”, desabafa a animadora de ATL. Embora tenha conseguido mudar de funções na câmara Municipal de Mafra, é-lhe difícil trabalhar “sem diminuição da carga horária”.
De baixa há duas semanas, Fátima consome-se com o facto de ter uma junta médica da Segurança Social a 10 de dezembro, embora aguarde a reavaliação do seu grau de incapacidade (agora é de 60%) desde novembro do ano passado. “Revolta-me, sinto isto como desumano.”
O estado de saúde agravado não tira a esperança à sobrevivente de cancro e membro da Associação Careca Power, mas preocupa-a e leva-a a fazer um reparo: “Estes casos deveriam ser avaliados pelo médico que os acompanha e não por uma junta que não os conhece e só olha para os relatórios.” Vale-lhe saber que conta com o apoio da família, dos amigos e das entidades patronais ao longo deste processo: “O patrão do meu marido tem sido compreensivo, mas podia não ser.”
Da perceção à realidade
A história de Fátima é familiar a muitos portugueses. Foi a pensar na perceção que os portugueses têm sobre a importância da doença, o que sabem sobre ela e como veem a resposta do Governo na Saúde, que a APIFARMA – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, encomendou um estudo à GfK Metris, no âmbito da iniciativa “Cancro: Cada Dia Conta – Da Prioridade à Acção”. Divulgados no dia 25 de novembro, os resultados evidenciaram que a Saúde tem muita importância para 97% da amostra (de 1001 inquiridos), que o cancro preocupa 75% (excluindo a Covid-19) e, ainda, que só três em cada 10 inquiridos (33%) entendem ser uma prioridade do Governo. Porém, este valor sobe para 41% nas doenças oncológicas e chega aos 56% nos doentes com cancro.
A população em geral entende que se tem melhor qualidade no privado, mas os doentes oncológicos, que vivem o problema, dão primazia ao público
António Gomes, diretor-geral da GFK Metris
Sobre o investimento feito pelo Executivo neste campo, apenas 11% acham que é justo. Um indicador menos favorável e que se faz acompanhar de alguma insatisfação no acesso aos cuidados de saúde: tempos de espera elevados (44%) e muita demora (25%) para uma primeira consulta de diagnóstico. É de assinalar a perceção “generosa” dos doentes com cancro acerca da forma como foram tratados, com destaque para o setor público. O sociólogo António Gomes, diretor-geral da GfK Metris esclarece: “A população em geral entende que se tem melhor qualidade no privado (40% contra 37% no SNS), mas os doentes oncológicos, que vivem o problema, dão primazia ao público (65% face aos 28% fora dele).”
A experiência de doentes e cuidadores
Os desafios que se colocam a quem recebe a “má notícia” e aos familiares também foram levados em conta no estudo, podendo dizer-se que o relato de Fátima Abreu surge alinhado com as conclusões do inquérito: a maioria dos inquiridos (80%) considera o processo de obtenção de apoios da Segurança Social fácil (80%), os apoios é que são considerados insuficientes (54%), com apenas 11% a beneficiarem deles. Uma vez doentes, 51% deixam de trabalhar mas em 68% dos casos o relacionamento com o empregador correu bem. Não obstante, o impacto na economia familiar é significativo (47%). .
Do lado dos cuidadores, a pressão é grande, com o desgaste psicológico a liderar a lista de dificuldades (24%), seguindo-se as deslocações, o desamparo e o escasso apoio financeiro, sendo que a quase totalidade (98%) não recebeu nenhuma pensão ou ajuda da Segurança Social. “Quem tem a possibilidade de regressar ao trabalho, e muitos já o fizeram”, observa António Gomes, “o processo é fácil”, embora mais para o sobrevivente (60%) do que para quem dele cuida (54%).
Já lá vão oito meses e a minha vida está parada, nos primeiros meses cheguei a temer não aguentar estar disponível 24 horas por dia sem poder descansar
Rute Cardoso, mãe de jovem com doença oncológica
Aos 47 anos, a enfermeira Rute Cardoso está sem trabalhar desde março, altura em que saiu de São Miguel, nos Açores, rumo ao Hospital Pediátrico de Coimbra, onde o filho, diagnosticado aos 12 anos com Sarcoma de Ewing (tipo de cancro que se forma no osso ou nos tecidos moles), foi operado e está a fazer quimioterapia. “Fomos apanhados pelo confinamento e continuamos na residência da Acreditar (associação que presta apoio a pais de crianças com cancro), que tem sido uma boa ajuda”, assegura. Partilham a casa com pessoas em idênticas circunstâncias e ficam num quarto com casa de banho, mas custa-lhe estar separada do filho mais velho e dos outros familiares.
“Já lá vão oito meses e a minha vida está parada, nos primeiros meses cheguei a temer não aguentar estar disponível 24 horas por dia sem poder descansar”, confessa esta mãe, que anseia pelo dia de chegar a casa. Não será no Natal: “Com a pandemia e o número de testes que teríamos de fazer entre ir e voltar, ele mesmo decidiu ficar até ao final do tratamento, em janeiro”. Nessa altura, talvez venha o aguardado apoio escolar, neste atribulado oitavo ano.
De momento, tem o atestado de assistência a familiares com doença crónica (renovável por até seis meses e prorrogável até quatro anos sem ter que ir a junta médica) e ainda não sabe quando vai poder voltar ao local de trabalho, no Hospital do Divino Espírito Santo. “Faz-me falta o acompanhamento psicológico”, lamenta Rute, “mas não há pessoal disponível e, para ter acesso a ele, era preciso que estivesse num estado mais crítico, mas só por telefone”. Por ora, “sempre que é possível faço exercício físico e meditação, para não ficar maluca”.
O (muito trabalho) que se segue
O combate ao cancro uma das prioridades da Comissão Europeia no âmbito das políticas de Saúde. Com Portugal a assumir a Presidência da UE no início do próximo ano, esta questão ganha relevo, quer por o cancro ser a principal causa de morte antes dos 70 anos – e a segunda em termos globais – como pelos recursos envolvidos, que ficam aquém do que seria necessário: as verbas destinadas à prevenção e tratamento da doença, representam, em valor per capita, metade das da média Europeia.
Com o apoio do Ministério da Saúde e a parceria de 12 Associações de Doentes, a iniciativa da APIFARMA visa criar uma estratégia centrada na igualdade de acesso a novas terapias. O estudo já referido indica que 60% têm a perceção de que é longo o caminho até aos tratamentos inovadores, indo ao encontro das conclusões do inquérito recente da Organização europeia que reúne associações de pacientes e a indústria farmacêutica (EFPIA Patients): no indicador que mede o tempo necessário para aprovar e financiar terapias oncológicas, o Estado Português situa-se nos 50%, que se traduz, em 836 dias, em média (quase dois anos quatro meses).
Os genes não são a solução para tudo, é preciso ver os casos concretos e personalizar soluções, através de uma medicina de precisão
Manuel Sobrinho Simões, Director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular /Porto
Por fim, quando se fala de oncologia, não se pode esquecer o que está em jogo: as pessoas. “O Big Data (Ciência de Dados) não resolve a incerteza”, alertou Manuel Sobrinho Simões, Director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, um dos convidados para a sessão de apresentação do estudo. Os desafios que temos pela frente só podem ser ultrapassados através da compreensão (o investigador brincou com a palavra em inglês, “under-standing”, para referir que é preciso ir ao fundo da questão sem ficar pela superfície, ou seja, no plano da quantificação).
“Os genes não são a solução para tudo, é preciso ver os casos concretos e personalizar soluções, através de uma medicina de precisão”, acrescentou. Com uma longevidade crescente, não bastam o diagnóstico precoce e o controlo das neoplasias avançadas, há que olhar para “os desafios menos badalados” da prevenção e da qualidade de vida. “O problema da Dona Rosa ou do Senhor Silva não se resolve só com o genoma”. Por outras palavras, os fatores ambientais, o estilo de vida e a relação entre doentes e quem cuida deles assumem um valor decisivo neste combate: psicólogos, técnicos e cuidadores, “que têm experiência em pessoas e não só em números”. Sem esquecer, ainda, a solidariedade intergeracional.