“Não é um número que nos deixe felizes ou satisfeitos”, admitiu a secretária de Estado da Saúde, Jamila Madeira. Mas, sublinhou, com o regresso de férias e uma maior mobilidade de todos, o aumento era expectável. “Importa também sinalizar que estamos sobretudo perante focos de transmissão familiar”, acrescentou. Ainda assim, como frisou depois Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, apenas 12% dos novos casos têm mais de 70 anos, o que poderá ser uma boa notícia em relação à mortalidade.
O número de que se fala é o da atualização diária de novos casos de infeção por SARS CoV-2. Hoje anunciaram-se 646, o valor mais alto do nosso país desde abril. Nas últimas 24 horas, registaram-se ainda três mortes relacionadas com a Covid-19 — duas na região de Lisboa e Vale do Tejo e uma na região Norte. Além disso, em vigilância permanecem 35 151 contactos, mais 685 do que no dia anterior.
“Gostaria mais uma vez de lembrar que este vírus ainda não completou um ano e não conhecemos por completo o seu comportamento. Sabemos que estamos num ciclo diferente da epidemia, em que a nossa vida tende para a normalidade. E por isso, mesmo com as devidas precauções, há um maior contacto entre as pessoas e daí mais casos. Era previsível, mais ainda quando o fenómeno se repete um pouco por toda a Europa”, sublinhou Graça Freitas. “Faz parte do processo. Foi já a contar com isso que o governo decidiu que íamos voltar à situação de contingência.”
120 mil professores + 1,2 milhões de alunos
A questão de maior preocupação, admitiu ainda a diretora-geral da Saúde, é obviamente o regresso às aulas, porque implica ter 120 mil professores e mais de 1,2 milhões de alunos em mobilidade e contactos diários. “Manda por isso a prudência que, numa altura destas, não ensaiemos outras medidas que possam levar a mais contactos e possíveis infeções”, justificou, a propósito de uma eventual reabertura de discotecas ou permissão de público nos estádios de futebol. “Não será nos próximos tempos”, frisou.
Ali se garantiu ainda que tudo está a ser feito nos lares conforme o previsto — passe as declarações do presidente da Assembleia da República, que esta segunda-feira fez uma crítica a esse propósito (“Parece impossível que ainda não se tenham tirado ilações, só fazendo testes quando há casos suspeitos). E se frisou que, no pico da pandemia, havia casos confirmados em mais de 300 estabelecimentos e agora o número está na casa dos 60.
Inverno negro…ou nem por isso?
Graça Freitas esclareceu ainda sobre as previsões negras de um estudo divulgado no início da semana por uma universidade de Washington. Ali se apresentavam três cenários para o nosso país. Um mau, um muito mau e um ainda pior. Na melhor das hipóteses, avança o Institute for Health Metrics and Evaluation, centro de investigação sobre saúde mundial daquela instituição americana, haverá 4 mil óbitos e 20 mil novos casos em dezembro. Dados que a direção geral-da saúde não valorizou.
“Não sou eu que digo, são os especialistas. Estes estudos têm grandes fragilidades nos métodos que utilizam. No passado, já houve grandes erros, de acontecimentos que não se confirmaram. Não nos merece, por isso, particular atenção, porque não deu provas de ter um bom modelo de previsão”.
A palavra a um epidemiologista
Já Manuel Carmo Gomes, Professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, considera que um aumento de casos diários desta ordem só era esperado entre as últimas semanas de setembro e as primeiras de outubro. “Infelizmente isto está a acontecer antes do início das aulas, ao contrário do esperado. Aquilo a que temos assistido na última semana é um reflexo da atividade das pessoas no mês de agosto. A questão é: o que andaram os portugueses a fazer nas duas ou três primeiras semanas de agosto?”.
O especialista acredita que o facto de não haver um aumento equivalente de internamentos revela que a maioria dos infetados pertencerá a uma camada mais jovem da população. “No verão, as pessoas, sobretudo os jovens e os jovens adultos, relaxaram, encontraram-se mais em locais públicos, mesmo que tenha sido ao ar livre, aumentando a probabilidade de contactos e contágio”. E sublinha que isso mesmo tem sido confirmado pela PSP, que recebeu denúncias de diversas festas privadas. “Ao chegarem ao local, os agentes fazem as pessoas dispersar e, geralmente, toda a gente obedece. Mas, entretanto, já houve oportunidade de infeção. E, depois, o transporte do vírus para o seio familiar”.
“Regresso a um confinamento total? Não acredito que vá acontecer”
Ainda assim, reconhece o especalista, a situação não pode ser comparada ao mês de março, pois estas correntes são ainda relativamente curtas, dando possibilidade às equipas de saúde pública de responderem adequadamente à situação. “Em março tínhamos o número de novos casos a duplicar de dois em dois dias. Não foi isso que aconteceu na última semana. Para já, as equipas de saúde pública têm conseguido perceber onde começam e acabam as correntes de transmissão, mas, se estes números se mantiverem ao longo de semanas, corremos o risco de perder o controlo”, revela Manuel Carmo Gomes.
Quanto a regressar a um confinamento total, o professor comenta, “não advogo esse tipo de medida, nem acredito que vá acontecer. Penso que será mais eficaz uma ação localizada, a nível de concelho e, nos grandes centros urbanos, de freguesia, através da qual se decida fechar determinados espaços, abrir outros, impor medidas mais ou menos restritivas, consoante as diversas situações assim o exijam. Temos de ser muito eficazes a fazer isto”.