Monica Maggioni é uma veterana. Desde 2015 que é CEO da RAI, a televisão pública italiana. É também vice-presidente da União Europeia de Radiodifusão. Como correspondente de guerra, fez cobertura na Palestina, no Afeganistão e no Iraque. Na segunda guerra do golfo, foi a única jornalista italiana a acompanhar as tropas no terreno. É também por tudo isto que o testemunho que deixou, no final da semana passada, no Washington Post, impressiona. O caso não é para menos: é um relato arrepiante. Longo, mas que ninguém deve deixar de ler. A palavra, então, a Monica Maggioni.
“Antes de o vírus chegar, vivia da maneira habitual. Sempre a ir e a voltar de Milão para Roma, onde trabalho. Como muitos outros, fechei os olhos às notícias preocupantes que vinham da China. Até ao início do contágio na área de Codogno, perto de Milão, foi, para mim, apenas mais uma notícia.
Então, quando o vírus chegou mais perto, fiquei surpreendida ao descobrir que eram necessárias escolhas difíceis – e rápidas, muito rápidas. A primeira: onde espero que tudo isto passe? Fico em Roma, onde moro e trabalho, ou volto para a pequena vila fora de Milão, onde meus pais, já idosos, vivem? Acabei por escolher ficar perto dos meus pais, para o caso de precisarem de ajuda. O resultado é que minha família acabou dividida em duas, por causa do vírus.
Agora, vejo-me confinada a um lugar onde o tempo está suspenso. Todas as lojas estão fechadas, exceto mantimentos e farmácias. Todos os bares e restaurantes estão fechados. Todo o pequeno sinal de vida desapareceu. As ruas estão totalmente vazias; é proibido até dar um passeio, a menos que se seja portador de um documento que explique às autoridades por que razão saímos de casa. O bloqueio que começou aqui na Lombardia estende-se agora a todo o país.
Um país fechado em casa
Para muitos italianos, os avisos normais sobre o vírus simplesmente não eram suficientes para mudar o comportamento. Era fácil fazer de conta que não se passava nada. Era até mais conveniente culpar os estrangeiros ou fingir que as notícias eram irreais. Até que no domingo passado, o Papa Francisco não deu a bênção da sua janela no Vaticano, como habitual. Em vez disso, preferiu enviar uma mensagem por vídeo. Fê-lo para evitar que se juntasse uma multidão na Praça de São Pedro. Mas também para dar um sinal ao mundo.
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Desde então que as antigas portas de madeira de todas as pequenas igrejas em todas as aldeias estão fechadas. Os idosos aqui na Lombardia lembram que, mesmo em tempos de guerra, as igrejas eram um abrigo para todos, um lugar de alívio comum. Agora, a ideia de que nem os funerais podem ser celebrados é uma fonte de mais angústia. Hoje em dia, em Itália, morre-se em silêncio e é-se enterrado em silêncio.
Uma guerra silenciosa
E o silêncio está em toda parte. Esta é uma guerra silenciosa: sem bombas, sem tiros, sem gritos. Sem carros, sem motos, sem crianças a brincar na rua. A maioria das suas atividades diárias foi simplesmente proibida. Num país onde se vive de uma forma vibrante, calorosa, esta mudança tem um preço enorme. Em breve, se tudo correr bem, haverá um tempo para a vida normal. Mas agora não.
Como muitos, mantenho contato com colegas, amigos e familiares por telefone, mensagens e WhatsApp. Trocamos informações constantemente. Todas as noites, depois do jantar, os meus pais, irmãos e sobrinhos ligam-se por Skype. É um novo ritual, uma maneira de manter a família próxima.
Nas redes sociais, os tópicos sobre o vírus crescem e multiplicam-se. Tenho alguns amigos médicos muito bons que decidiram estar na linha de frente. É impossível descrever o que eles estão a passar. A falta de camas nos cuidados intensivos está a obrigá-los a ter de tomar decisões que há uns tempos seriam impensáveis – e inaceitáveis: quem pode ser tratado e quem é velho, ou está fraco demais, para tentar salvar.
São eles que me dizem que, se os números continuarem a crescer ao ritmo atual, em breve estarão sobrecarregados. E isso está a acontecer na Lombardia, onde temos um sistema de saúde considerado um dos mais confiáveis, avançados e eficientes da Europa.
À escala mundial
É claro que sei que o que está a acontecer aqui pode acontecer em Roma, e depois em França ou na Alemanha. Os Estados Unidos podem demorar uma semana ou duas a chegar a isto. Parece que a perceção da doença e a alteração repentina do discurso político está a repetir-se um pouco por todo o lado, de forma mais lenta ou mais rápida consoante a capacidade do país para enfrentar os factos.
Também vejo sinais de esperança, claro. Há uma série de instituições italianas em funcionamento. Há médicos e enfermeiros a trabalhar dia e noite, a arriscar a vida para ajudar os outros. Em Milão, é mesmo possível detetar um novo sentido de comunidade: os jovens oferecem “tempo” e vão fazer as compras e levar medicamentos aos vizinhos mais velhos, confinados às suas casas.
Depois, haverá depois tempo para fazer um balanço do que correu bem e do que correu mal, quando for seguro fazê-lo. Mas até lá já aprendemos que isto não é apenas mais uma gripe; é um vírus terrível e novo a desafiar uma nação inteira, a própria Europa e talvez o planeta. E não há receita milagrosa para sair disto. Nada, a não ser um profundo respeito pelos conselhos da ciência.”