Boa tarde, concidadãos. Por entre estas quatro paredes da sétima semana de recolhimento, tenho apreciado a forma diligentemente portuguesa de atacar o vírus: falar imenso dele e fazer relativamente pouco.
Eu não queria incomodar-vos, porque sei reconhecer o prazer de se levar uma tarde ancorado numa esplanada, e muito menos gostaria de sugerir o fim abrupto da ansiada época balnear, mas assim não vale a pena. Custa, mas tem de ser.
O País tem de entrar em quarentena na totalidade quanto antes. Os italianos chegaram à única conclusão possível a que os chineses também já tinham chegado. Veja-se Madrid com centenas de novos casos a cada dia. Não se pode dar tréguas a tamanho descontrolo. Já se destacou aí o exemplo de Macau, mas Macau está a seguir os mesmos procedimentos da China continental. O que fez foi fechar as portas e pronto. Com a diferença de que apesar da maior densidade populacional do mundo (mais de 18 000 pessoas por km2) Macau tem uma área de apenas 30 km2 (há inúmeras freguesias portuguesas maiores que isso) e um istmo de ligação ao continente que é autenticamente um túnel de acesso – a única meia dúzia de metros que não está rodeada de mar.
Não houve ciência nenhuma. Fechou-se a torneira, disse-se a alunos e trabalhadores que estavam de férias do Ano Novo chinês para ficarem onde estavam (e assim continuam) e agora decretou-se que cidadãos vindos de países em risco tenham de ficar durante 15 dias de quarentena num hospital preparado para o efeito, pagando as despesas do próprio bolso, aliás, tal como a China continental também decretou. Ou seja, fez-se parar todo o território à exceção dos serviços essenciais. E assim estamos, uns e outros, praticamente parados há sete semanas.
Sei que isto num país da União Europeia levantaria inúmeras questões de diversa natureza, mas o tempo não está para esquisitices. Ainda é relativamente cedo para termos certezas sobre o vírus, à exceção de que se propaga com uma fulgurante facilidade, mais que os seus parentes anteriores e até em estágios em que não se aparentam quaisquer sintomas. Têm saído estudos de autores chineses que falam disso.
O mais recente foi um estudo de caso sobre um paciente que infetou quase uma dezena de pessoas num autocarro em Wuhan ainda em janeiro. Os resultados apontam que, sem os devidos cuidados e com certas condições, as partículas podem viajar até cerca de 30 metros. Mas é difundido que o seu raio de ação age normalmente até aos 5 metros. O mesmo para pessoas que o contraíram por terem tocado em superfícies infetadas, como vizinhos em prédios com pessoas infetadas. Por isso é que aqui os elevadores têm película, caixas de lenços e muitas portas estão abertas para se evitar tocar em puxadores.
Vejam também a análise do percurso do paciente zero em Itália e o número de pessoas que atingiu. Ou um caso de estudo no famigerado mercado de Wuhan, em que um senhor contraiu o vírus por ter estado durante apenas 30 segundos ao lado de uma cliente infetada na mesma banca de mercado. Há um vídeo que contabiliza o pouquíssimo tempo em que aquelas duas pessoas se cruzaram.
Por tudo isto, e sobretudo por toda a seriedade das apertadas normas de segurança que aqui se seguem, para quem está aqui na China soa um pouco inconsciente, infrutífero e quiçá um bocado idiota as pessoas acharem que estão protegidas apenas por excluírem beijinhos e abraços (quando não se esquecem de o fazer). Basta estudar o modo de transmissão. Mesmo que se cumprimentem com o pé, ao sentarem-se à mesma mesa e partilharem os mesmos espaços do que pessoas infetadas (podendo ser qualquer um de nós) é por si só um fator de altíssimo e, diria, desnecessário risco.
É quase o equivalente a usar unicamente o “este gajo/a tem boa pinta” como medida de proteção contra o HIV. Ou como ir para o meio de uma fortíssima tempestade com um daqueles guarda-chuvinhas de trazer no bolso e acreditar que se vai chegar a casa absolutamente enxuto. Aqui, na China, isto foi entendido desde a primeira hora em que se percebeu o que isto era ou poderia ser. Aí, em Portugal, vão acabar por chegar à mesma conclusão, mas quanto mais cedo o fizessem melhor. É que fazendo tudo aos poucos não se vai lá.
Por exemplo: um professor dá positivo, manda-se a turma x para casa de quarentena. Alguns dias depois talvez se encerre a escola… Mas até parece que o professor não andou de transportes, não foi também ao supermercado, farmácia, centro comercial, restaurante, ginásio, não jogou uma futebolada nem privou com familiares e amigos. Ou seja, não adianta de nada isolar aos soluços, hoje uns, amanhã outros, hoje este gabinete, amanhã aquele, quem quer recolher que se recolha, quem não quer que ande por aí à campeão. Nesta história não pode haver meios termos, ou é ou não é. E chamarem-lhe epidemia ou pandemia não muda em nada a forma como o vírus se propaga. A solução é fechar de uma vez e pronto.
Sei que não é fácil socioeconomicamente e nem toda a gente tem o sistema político ou o arcaboiço económico da China, mas também ninguém gosta mais de dinheiro nem dá mais importância à economia dos que os chineses. E ainda assim estão há sete semanas de portas fechadas (começam agora a despertar timidamente) com rios de negócios a ir pelo cano abaixo.
Já depois de começar a atirar estas palavras, fiquei a saber num grupo de wechat de portugueses nesta província que um deles viajara para Portugal esta semana e não foi alvo de qualquer controlo à chegada ao aeroporto. Mais: ele próprio, apesar de já levar mês e meio de quarentena na bagagem, tomou a atitude voluntária de acumular mais 15 dias em casa. No entanto, do Saúde24 (creio ser esse o nome) disseram-lhe que não era necessário fazê-lo, apenas se apresentasse sintomas é que se aconselharia o recolhimento. Ou seja, só após circular por aí à vontade, a matar saudades de bitoques e bolas de Berlim, é que se pensaria no assunto.
Caríssimos, ausência de qualquer controlo nos aeroportos? “Se” surgirem sintomas? Bem, aqui já entramos na anedota do cúmulo do cúmulo. Isso não é combater uma pandemia, isso são férias nas Caraíbas.
Francamente, dada a localização e dimensão de Portugal, com as medidas certas poderiam dar conta do recado antes de males maiores e nem precisariam de tanto tempo de hibernação como outros países. Mas tem de ser de forma imediata, organizada e generalizada. E sem exceções. Morais da história:
1) Entendam-se como quiserem com as políticas, economias, circulação de pessoas e bens, uniões europeias, mas se calhar seria melhor pôr a Saúde em primeiro lugar, tal como diz o ditado.
2) Como alguns responsáveis já frisaram: não vale a pena andarem uns a tomar medidas fechados em casa e outros na boa a sair para tomar café e pôr o euromilhões. Tem que ser todo um país a remar na mesma direção, cumprir medidas estritas e agir em convergência com espírito de missão. A camisola não é para vestir só quando joga a seleção e o pluribus unum nao são só aquelas palavrinhas esquisitas que enfeitam o símbolo do Benfica. Mas, isto se calhar sou eu que tenho a vista um bocado turva por anos de um vermelho um bocado diferente. É uma boa altura para ver as coisas pelo lado positivo e descobrir a fibra que se tem enquanto comunidade e enquanto povo. Ainda agora estava a ler uma notícia de como os supermercados e restaurantes oferecem comida e bebidas aos rapazes do take away que estoicamente nunca falharam durante este período, levando os bens à porta das pessoas. Inúmeras histórias de funcionários como estes, de quem ao longo deste processo não pôde parar, de entreajuda e superação. É preciso agir com determinação e respeito, mas sem medos nem exageros, sem oitos nem oitentas. A hora é de responsabilidade, sentido de dever e empatia para com o bem comum. Será pedir muito, portugueses?
Manuel Duarte João Pires é leitor de Português na Universidade Sun Yat-sen, em Zhuhai (cidade colada a Macau), na província de Cantão, China, onde vive há sete anos, com a mulher e uma filha (de seis anos). “Há sete semanas que praticamente não saímos de casa, e temos aulas online. A minha opinião, posso dizê-lo, partilha a visão dos portugueses que estão aqui – e também dos chineses que conhecem a realidade europeia – nomeadamente em relação à leviandade com que as coisas estão a ser encaradas na Europa.”