Há dez vezes mais bactérias a viver no nosso corpo do que células. Esta comunidade de microorganismos influencia quase todos os processos biológicos. Da digestão, que é o mais óbvio, uma vez que a comunidade mais importante vive no trato intestinal, à resposta ao medo. Nos últimos anos, cientistas de todo o mundo têm feito descobertas fundamentais na compreensão do funcionamento do microbioma e do impacto que tem na saúde e na doença. Uma das mais mais surpreendentes é a linha aberta de comunicação entre as bactérias do intestino e o cérebro. Apesar de aparentemente distantes um do outro, parece agora evidente que os dois órgãos comunicam através das bactérias e que estas afetam o humor, podem ter um papel na depressão, e até no processamento da informação. Boa parte deste conhecimento já está a ter reflexos na forma como lidamos com a doença, na prevenção de problemas e até na escolha de tratamentos para o cancro ou para o síndrome do cólon irritável, como nos explica o médico Eamonn Quigley, responsável pelo departamento de Gastroenterologia e Hepatologia do Hospital Metodista de Houston, EUA e referência a nível mundial no estudo das bactérias, vírus e fungos que habitam no nosso corpo.
Nos últimos anos, o estudo do microbioma tem-se tornado cada vez mais relevante. Que aplicações já existem deste conhecimento?
Há várias. Fazem-se transplantes fecais para tratar diarreias e colite relacionada com a bactéria C. difficile. Usamos probióticos [produtos alimentares que contêm micro-organismos benéficos à saúde] e prebióticos [produtos que estimulam o crescimento de bactérias benéficas] em vários problemas, como a diarreia nas crianças, prevenção de diarreia associada ao tratamento com antibióticos, no tratamento de síndrome do cólon irritável e algumas formas de colite.
O que se tem percebido é que a influência vai além das questões relacionadas com o sistema digestivo.
Certo. Também usamos o microbioma para prever quem tem maior probabilidade de responder a determinadas estratégias. Por exemplo, para recomendar uma dieta rica em fibra ou baixa em FODMAPs (baseada em hidratos de carbono de cadeia curta), recomendar ou não a metformina em diabéticos ou ainda os inibidores de checkpoint (um tipo de imunoterapia) em diferentes tipos de cancro. A partir do estudo do microbioma também conseguimos prever o risco de determinadas doenças. Uma delas é o cancro do cólon. Mas mais importante de tudo, a nossa compreensão do papel fundamental do microbioma na saúde, em particular na infância, pode ter consequências a longo prazo. Sabemos que pode predispor, no adulto, para a obesidade e condições relacionadas com problemas imunitários.
Tem-se dedicado ao estudo do síndrome do cólon irritável. O que sabemos da relação entre as bactérias do intestino e esta doença?
Há evidência que aponta para o papel do microbioma nesta doença. O facto de alguns indivíduos a manifestarem, pela primeira vez, após uma gastroentrite. Também sabemos que o microbioma do intestino é diferente quando se sofre de síndrome do cólon irritável, que há impacto da toma de certos antibióticos, resposta a probióticos. Também sabemos que o microbioma pode ter um papel em processos metabólicos que podem dar origem a alguns dos sintomas, como a produção de gás intestinal.
Que avanços prevê para os próximos anos, nesta área?
Será possível definir quais os componentes vitais nos transplantes de microbiota fecal e o que é mesmo preciso para curar determinada doença, num determinado indivíduo. Estamos a falar de bacterioterapia personalizada. Iremos perceber melhor o poder do microbioma aplicado ao diagnóstico e ao prognóstico. Aumentaremos o conhecimento do microbioma do esófago, estômago e intestino. Iremos descobrir medicamentos a partir do conhecimento do microbioma e à medida que a metagenómica [estudo do material genético recolhido diretamente do ambiente] e a metabolómica [estudo dos produtos do metabolismo de um organismo] avançarem e se tornarem mais acessíveis e amplamente aplicadas teremos um entendimento mais aprofundado do microbioma normal e da sua função.