A cirurgiã Nina Shapiro, que colaborou com o The New York Times, a Time e o Wall Street Journal, e que se formou em Harvard, decidiu esclarecer várias questões que todos os dias são alvo de ideias contraditórias. Analisou os estudos existentes e outras fontes para dar uma resposta. No livro, Faz Bem ou Faz Mal (em Portugal editado pela Clube do Autor), a médica desmonta os principais mitos da saúde. A VISÃO publica excertos de alguns capítulos para que possa descodificar alguns deles.
Os telemóveis provocam cancro?
O adulto médio pode passar mais de dez horas por dia a olhar para ecrãs – incluindo os dos telemóveis, computadores portáteis, televisores, tablets, etc. O uso excessivo e a consulta obsessiva dos telemóveis (e das contas das redes sociais) tornar-se-ão em breve um verdadeiro diagnóstico de transtorno mental. O Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais é, como o título sugere, a bíblia da Associação Americana de Psiquiatria. Esta obra fornece os critérios para todos os transtornos psiquiátricos conhecidos atualmente, permitindo aos profissionais de saúde mental, farmacêuticas, companhias de seguros e até entidades jurídicas apresentar diagnósticos e tratamentos a pacientes de uma maneira estandardizada.
A primeira edição é de 1952 e, como o campo da psiquiatria continua a evoluir, atualizações das definições e dos critérios têm sido publicadas todos os cinco ou dez anos (a atual edição do dicionário é a quinta). Nos últimos anos, assistiu-se a pressões para que as pessoas dependentes dos telemóveis (designadas nomófobas – que temem ficar sem contacto através do telemóvel) sejam diagnosticadas como portadoras de um verdadeiro transtorno mental. Dependentes ou não, a maior parte de nós passa muito tempo com os dispositivos móveis, o que poderá ter outras consequências para a saúde.
Muitas pessoas utilizam o bluetooth, a alta voz ou os auscultadores quando usam o telemóvel. A maior parte fá-lo por conveniência, como medida de segurança enquanto conduz, ou para manter as mãos livres durante o desempenho de outras tarefas. Porém, outras usam o modo mãos-livres para prevenir o cancro do cérebro. Numerosos estudos, publicados em revistas de neurocirurgia, de bioengenharia e de oncologia, têm tentado avaliar o uso prolongado do telemóvel e estabelecer uma possível correlação com o cancro do cérebro. Um relatório foi ao ponto de demonstrar uma conexão entre as radiações dos telemóveis e o cancro do coração.
Muitos neurocirurgiões que conheço já não encostam o telemóvel ao ouvido. Mesmo com estes estudos académicos – alguns dos quais são estudos sobre estudos –, não existe, por enquanto, nenhum consenso acerca de uma relação direta entre o uso de telemóveis e o cancro do cérebro. Alguns estudos asseguram-nos de que não corremos risco acrescido de cancro do cérebro por causa da utilização frequente de telemóveis. Alguns afirmam que o risco duplica ao fim de dez anos. Outros dizem que o risco aumenta em cinco a dez por cento. Com resultados tão díspares, como é possível tomar decisões para nós próprios, para os familiares e para uma população de utilizadores juvenis de telemóveis sempre em crescimento? E os telefones de pulso? Aumentam a incidência do cancro ósseo devido à exposição direta às frequências de baixa radiação no pulso?
Sendo os dados discrepantes, a conexão celulares/cancro do cérebro chegou aos meios de comunicação como fogo incontrolável ao longo de 2016. Neurocirurgiões de fama mundial debateram a questão na televisão, em direto, com pontos de vista diametralmente opostos. Quem tinha razão? Com tantas tecnologias em evolução e conclusões variáveis sobre a frequência da doença, continuamos a não saber. No grande esquema da evolução tecnológica, os telemóveis são relativamente recentes. O cancro do cérebro não é um acontecimento isolado que possa ser relacionado apenas com um tipo de exposição – aos telemóveis ou outra. Continuo a usar o telemóvel, muitas vezes encostando-o ao ouvido. E posso vir a ter cancro do cérebro, não por causa do uso do telemóvel, mas devido a alguma outra predisposição genética ainda desconhecida, ou por azar. Ou, sim, talvez (em parte) por causa do telemóvel. Mas por enquanto isso não está determinado. Para já, o que sabemos em definitivo é que os telemóveis provocam mais acidentes de carro do que os tumores cerebrais. Textos ofensivos e meios sociais nocivos causam mais sofrimento cerebral e até suicídios do que as ondas eletromagnéticas através das quais eles se propagam
A água faz bem à pele?
A água ocupa quase três quartos da superfície do nosso planeta, e o mesmo se passa connosco. A água é um recurso de tal modo essencial, que a sua presença é literalmente uma questão de vida ou de morte para países, cidades e pessoas. O best-seller de Linda Sue Park, Um Longo Caminho, em parte sobre a caminhada diária de quatro horas de uma jovem sudanesa do Sul para ir buscar água a fim de garantir a sobrevivência da família, reforçou o reconhecimento nacional e internacional da importância essencial de algo que frequentemente tomamos como garantido.
Durante mais de uma década, a Califórnia enfrentou uma seca grave que levou a restrições de consumo de água pela população. Os meus filhos ficaram a saber que, por cada vez que não descarregavam o autoclismo, poupavam o equivalente a 11,5 litros de água para o nosso ressequido estado. A água é, simultaneamente, uma representação real e metafórica da sobrevivência. Na verdade, é “tudo isso”. Mas os seus poderes são limitados. Precisamos de água para sobreviver e também para prosperar. Mas, apesar de os seus poderes nutritivos serem mais do que superficiais, não elimina toxinas, nem proporciona uma pele radiante ou previne as rugas.
Ainda que em medicina o turgor (pele flácida denota desidratação e pele firme boa hidratação) permita uma avaliação rudimentar, mas válida, sobre a desidratação do doente, muito do turgor da pele tem que ver com o colagénio, a elastina e a gordura subdérmica, os quais, com ou sem água, diminuem com a idade. Em suma, ainda que a água seja vital para a sobrevivência, não proporciona uma pele mais jovem.
Café é prejudicial?
A cafeína é a droga viciante mais aceitável socialmente que existe no mercado. Não ficamos com superpoderes depois de uma chávena de café, mas estaríamos quase inertes sem ela. E ao contrário do álcool ou de outras drogas viciantes, a dependência da cafeína não é encarada como uma coisa negativa. Contudo, é uma droga, e somos viciados. Dito isto, não é uma droga assim tão má e, apesar de provocar dependência, a nossa excitação diária devido à cafeína pode ser-nos vantajosa.
Alguns estudos permitiram concluir que o consumo habitual de cafeína reduz o risco de sofrer das doenças de Alzheimer e de Parkinson e de alguns tipos de cancro. Mas pode estar associado ao aumento do risco de perda óssea e hipertensão. A ingestão de cafeína em excesso durante a gravidez – mais de 300mg por dia – tem sido associada à perda do feto. Apesar dos estudos em curso e das múltiplas e grandes análises populacionais, o consumo de bebidas com cafeína continua a não ser consensual: faz bem; faz mal. Afeta o crescimento; ajuda-o a concentrar-se. Não beba cafeína durante a gravidez; pode beber cafeína durante a gravidez.
Embora o café continue a ser a bebida com cafeína mais consumida, a cafeína está presente nos refrigerantes gaseificados açucarados, nos chás, nas bebidas energéticas, nas bebidas de café e chá açucaradas e com gordura (dá aí um mocaccino, por favor) e produtos de chocolate. Os adultos tendem a ser os maiores consumidores de café e chá, e as crianças e os adolescentes são consumidores crescentes de todas as outras guloseimas cafeinadas. Uma chávena de café normal contém cerca de 95mg de cafeína, e o consumo diário até 400mg mostrou não ter qualquer impacto negativo na saúde – não é necessariamente bom, mas também não é mau. Para as crianças entre os seis e os 12 anos, esta quantidade desce para 45mg a 85mg por dia e, para as grávidas, 200mg ou menos. Portanto, sim, as grávidas podem beber uma chávena (grande) de café normal por dia. Isto de acordo com as recomendações da FDA. Mas não se trata de promover os benefícios da cafeína; dizem apenas que não é prejudicial.
Uma lata de Red Bull contém 80mg de cafeína, quase o mesmo que uma chávena de café. Em algumas situações, até 1000mg de cafeína por dia é considerado seguro (segundo a FDA), por exemplo, para o pessoal militar que precisa de estar acordado por períodos mais longos. Mas esta afirmação pode ficar associada a algum perigo. Aqueles 1000mg equivalem a mais de dez chávenas de café, e isto não é bom para a saúde.
O vinho é bom ou mau para a saúde?
Ouvimos dizer com frequência que o vinho, especialmente o tinto, contém ingredientes “saudáveis”, desde que consumido com moderação. O que significa isto? O verdadeiro benefício de beber vinho tem mais que ver com as suas propriedades relaxantes, o que o torna num redutor do stresse, do que com a composição química. Desde que se limite o consumo.
Recentemente, investigadores que estavam a analisar as causas de cancro no fígado, calcularam que são necessárias três bebidas por dia para que se corra o risco da doença. Não foi um estudo pequeno. Os investigadores analisaram 34 estudos, envolvendo 8,2 milhões de pessoas e mais de 24 500 casos de cancro hepático. Encontraram também mais motivos para saudar o café, que parece proteger do cancro do fígado. (Mas isso não significa que possa beber três copos de cada bebida e eliminar o risco. O “maior” responsável pelo cancro do fígado no qual poucas pessoas pensam é o excesso de peso. Ter excesso de peso ou ser obeso pode provocar cancro do fígado, entre outros tipos de cancro.)
O vinho deve ter alguns benefícios para merecer ser elogiado por tantos estudos, assim como por profissionais de saúde. Que poção mágica o levou a ser considerado salutar e até preventivo de muitas doenças? Um dos estudos mais longos foi o Nurses’ Health Study (NHS), realizado durante 32 anos (1980-2012), com o objetivo de avaliar o impacto de práticas de saúde durante muitos anos em muitas pessoas. Um dos fatores avaliados foi o benefício (ou risco) de ingerir álcool, e o impacto a longo prazo em termos de riscos para a saúde, tais como cancro, doença cardiovascular, fraturas e doença mental. O recrutamento inicial para o estudo começou em 1976, e incluiu 100 mil enfermeiras. Tendo em conta a data do NHS original (houve outros nas décadas seguintes), eram, de facto, enfermeiras.
O seu congénere, o Physicians’ Health Study (PHS), realizado mais ou menos na mesma altura, envolveu homens, mas avaliou especificamente o impacto da aspirina e do betacaroteno. O mais notável acerca do NHS é que acompanhou pessoas, via questionários, ao longo de décadas, incluindo fatores como tabagismo, consumo de álcool e hábitos de exercício, num esforço para ligar estes comportamentos ao risco de cancro da mama, doença cardiovascular, outros cancros, fraturas e doença mental. Perto de 300 mil pessoas participaram desde o início neste estudo, que agora inclui homens e mulheres. Nenhuma recomendação de saúde é definitiva, incluindo o consumo de álcool. O NHS permitiu concluir que é melhor para as mulheres beberem um copo de vinho (ou homens que bebem até dois copos de vinho por dia), mais do que três vezes por semana, do que beberem mais do que um copo (os homens mais do que dois copos) menos de três vezes por semana. Por outras palavras, apurou -se que é melhor beber com moderação e com mais frequência, mas em menor quantidade.
Embora a ingestão moderada de álcool aumente o risco de cancro da mama e do cólon, bem como de fraturas da anca, diminui o risco de doença cardiovascular e de défices neurocognitivos. O componente resveratrol, proveniente do vinho tinto em particular, tem feito furor enquanto benefício adicional para a saúde. Esta substância mostra ter algum poder mágico para a saúde, ao ponto de agora surgir em comprimidos. Mas até agora estudo algum realizado com humanos mostrou benefícios diretos desta substância. Além do dilema do resveratrol, concluiu-se que o consumo de álcool em geral é benéfico para a saúde.
Com uma ressalva enorme: com moderação, significando não mais do que um copo antes ou durante a refeição da noite. Resveratrol ou não, o consumo habitual e moderado de álcool tem sido associado a uma taxa mais baixa de mortalidade, menor risco cardiovascular e menos riscos de diabetes, insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral. Contudo, se não beber, não sinta necessidade de o fazer. Não há provas de que beber álcool seja cardioprotetor por norma.
Alerta: A ingestão moderada de bebidas alcoólicas pode trazer benefícios para a saúde, mas não se sinta obrigado a começar a beber se não o faz habitualmente.
Devemos parar de beber leite?
Naquelas quintas, as vacas precisam de ser ordenhadas! Há vacas que andam ao ar livre, vacas alimentadas biologicamente, vacas às quais são administradas hormonas e vacas às quais são dados antibióticos. Vacas autorizadas a deambular e vacas que estão encerradas. Vacas que produzem leite biológico. Vacas que não necessitam de que o seu leite seja pasteurizado. E, depois, há a gordura: sem gordura/desnatado, magro, com baixo teor de gordura, com gordura reduzida, normal.
As compras de leite biológico, especialmente em lares onde existem crianças pequenas, são uma das principais razões por que a Associação de Comércio Biológico, nos Estados Unidos da América, passou de uma indústria de 3 mil milhões de dólares anuais para mais de 30 mil milhões. As preocupações crescentes em torno dos aditivos no leite, como as hormonas do crescimento e hormonas sexuais, e dos pesticidas na alimentação do gado e dos antibióticos administrados às vacas têm aumentado as dúvidas dos consumidores acerca do leite não classificado como biológico. Os conteúdos de vitaminas, proteínas, sais minerais e gordura são os mesmos no leite biológico e no leite processado convencionalmente.
Nunca prestei atenção à marca do leite que consumia até os meus filhos nascerem. Em criança, eu e os meus amigos bebíamos aquilo a que chamávamos “leite azul” (imagino que a desnatação lhe daria uma tonalidade azulada). Mantive este hábito até à idade adulta. Nos raros momentos em que consumi leite integral, tive a sensação de estar a beber gelado. Mas, quando os meus filhos alcançaram a idade de beber leite de vaca, também passei a fazer parte do megamercado dos maníacos do leite. Comprava leite integral biológico, de preferência o que apresentava etiquetas com o maior número possível de com e sem: com adição de DHA! Extraído de vacas sem exposição à rBGH! Com vitamina D e cálcio! E o meu preferido, demonstrando a idiota que era: as nossas vacas são vacas felizes!
Sim, continuo a comprar leite biológico, mas sobretudo por uma questão de hábito. O produto regular serve sem dúvida para mim (e para a minha família). E não tenho tanta certeza de que provenha de vacas particularmente felizes. O grande malvado é o leite cru, ou seja, não pasteurizado. Esta variedade pseudossaudável não é biológica – não foi submetida à pasteurização, um processo de remoção das bactérias prejudiciais desenvolvido por Louis Pasteur em finais do século XIX. O leite cru possui patógenos conhecidos, tais como a salmonela, a E. coli e a listeria, para citar apenas alguns, e é responsável por inúmeros surtos de doenças humanas. Não é recomendado pela Academia Americana de Pediatria, nem pelos centros para a prevenção e controlo da doença, nem pela FDA.