Os contos de fadas existem desde sempre no nosso imaginário. O “era uma vez” é passado de geração em geração há muitos anos e são os mais pequenos que mais estão em contacto com este mundo fantástico, em que tudo é possível e acaba bem.
Mas, será que é mesmo tudo assim tão bonito? De volta ao mundo real – e apenas aqui – podemos colocar este tipo de questões: O que jaz por detrás do “viveram felizes para sempre”? Quais são os verdadeiros impactos destas histórias nos mais novos?
O FORMATO DAS HISTÓRIAS
O livro ‘The Hero With a Thousand Faces‘, de Joseph Campbell, mostra-nos que os contos de fadas, à semelhança de muitas outras histórias, partilham um mesmo formato: Existe sempre um herói que arranja um motivo para sair da comunidade onde vive e parte à aventura, em busca de algo ou alguém. Durante a sua viagem, cruza-se com uma série de companheiros, bons ou maus, entre eles um antagonista e uma figura sábia. A certo ponto é-lhe dado uma arma ou um poder que ele deve usar para alcançar o que pretende. O protagonista usará então o seu poder e a ajuda dos seus companheiros para derrotar o inimigo – ou conquistar o amor. Regressa depois para junto da sua comunidade inicial, onde é intitulado de “herói”.
Os contos de fada parecem seguir este modelo, com uma ou outra alteração pelo meio. Sabe que outra história bem real segue este modelo? A história das vidas de muitos de nós.
Um pouco difícil de visualizar à primeira, não? Recapitulemos:
Vivemos em casa com a nossa família até ao ponto em que nos lançamos à aventura em busca dos nossos objetivos pessoais. Armados com “conhecimento”, “talento” ou “vontade”, e com a preciosa ajuda dos amigos que fomos conhecendo ao longo da jornada, conseguimos ultrapassar as barreiras que nos são impostas e alcançar aquilo por que lutámos.
No fim da aventura, voltamos ao início: formamos uma família, tornamo-nos “heróis” aos olhos do nosso cônjuge e, quem sabe, dos nossos filhos.
Por outras palavras, concluímos o nosso conto de fadas e vivemos “felizes para sempre”.
A SOCIEDADE
Numa primeira impressão, esta parece uma mensagem saudável para passar aos mais novos – uma metáfora universal e encorajadora, para que cresçam e escrevam o seu próprio “conto de fadas”.
Mas há que ter uma coisa em consideração antes de tirar conclusões: estas histórias são muito antigas, como já referido. Tal como a sociedade mudou desde o tempo dos contos de fadas, também estes podem ter-se tornado menos relevantes para os nossos dias.
Os contos clássicos dos irmãos Grimm – que serviram de base para muitos filmes da Disney reconhecidos mundialmente, por exemplo – foram escritos entre 1812 e 1857. Desde então, é normal que muita coisa tenha mudado e que as mensagens e papéis representados pelas várias personagens não se apliquem mais à sociedade moderna
Olhemos para o papel da mulher, por exemplo. Nos contos de fadas, é normalmente representada como indefesa, guardada por um dragão ou vilão, à espera de ser salva por um príncipe, o seu “amor verdadeiro”, que casará com ela num enorme castelo.
Traduzindo isto para a vida real, conseguimos encontrar semelhanças com o que acontecia há não assim tanto tempo atrás: Era socialmente expectável que a mulher vivesse em casa com os pais – os dragões – até conhecer um homem que a conseguisse sustentar, com o qual casaria “para sempre” – o divórcio também era mal visto.
Hoje em dia já não se assiste a este estigma social. A mulher tem o poder e a liberdade de partir na sua própria “aventura heroica”, atrás de qualquer objetivo que possa ter.
Nesta perspetiva, torna-se plausível que os contos de fadas transmitam às crianças visões desatualizadasda sociedade, com a capacidade de as vir a prejudicar mais tarde.
A AUTOIMAGEM
Alguns estudos apontam para o efeito negativo que os contos de fada têm sobre a autoimagem das crianças, principalmente das raparigas.
A imagem convencional das princesas é a de uma mulher bonita, magra e pela qual os “príncipes” lutam – veja-se, por exemplo, a Branca de Neve, a Cinderela ou a Bela de A Bela e o Monstro.
Um estudo da Universidade de Purdue, nos EUA, analisou 168 contos dos irmãos Grimm e constou que a noção de beleza é abordada em 94% deles. As princesas ou heroínas são “bonitas”, enquanto que as vilãs são descritas como “feias” em 17% das histórias.
“Eu penso que a mensagem que é dada às raparigas é a de que a beleza é um dos traços mais importantes para o sexo feminino na nossa sociedade”, diz Liz Grauerholz, socióloga e coautora do estudo.
Esta mensagem não é claramente a melhor a passar. Para além de ter a capacidade de reprimir outras ambições que não a beleza, as raparigas que não se encaixem no estereótipo da “princesa” descrito podem consequentemente vir a ter uma imagem negativa de si próprias.
“Os rapazes não recebem tanto a mensagem de que é importante ser bonito”, acrescenta a investigadora, visto haverem apenas 35 referências à beleza masculina nos contos analisados.
AS RELAÇÕES
Falemos agora do “príncipe encantado”: aquele homem perfeito que um dia surge para resgatar a princesa do seu tormento e servir-lhe a felicidade eterna.
Bom… ele não existe. Acontece que, no mundo real, ninguém é perfeito, seja príncipe ou princesa.
A ideia de que o nosso parceiro ou parceira tem de ser perfeito – seja lá o que isso for – é uma irrealidade que pode levar a desilusões ou frustrações; tanto no amor como quando se conhecem pessoas novas.
Ter uma ideia pré-concebida enraizada de como a vida e os outros devem ser pode ser, portanto, uma má ideia.
As crianças devem estar preparadas para todas as possibilidades e reviravoltas que a vida lhes traga, sem terem medo de fugir à “norma” e de se aventurar por outros caminhos em busca da sua felicidade individual.
E não é esse o verdadeiro heroísmo? Há quem diga que sim.
A SUSCETIBILIDADE
Alguns contos de fadas possuem descrições ou imagens que podem ferir a suscetibilidade de algumas crianças.
Apesar das várias adaptações que tornaram os contos mais apropriados a crianças – as mais conhecidas feitas pela Disney – os contos originais dos irmãos Grimm nem sempre terminavam com a apaziguadorafrase “viveram felizes para sempre”. Por vezes, de paz, não tinham mesmo nada.
No conto original da Cinderela, por exemplo, a história termina com as irmãs malvadas da princesa a serem cegadas por pássaros, que lhes bicam os olhos durante o casamento com o príncipe.
No caso da Capuchinho Vermelho, de nome original Little Red Cap, o conto termina com o afogamento do lobo em água a ferver, cuja Capuchinho – para piorar mais as coisas – reage com alegria.
Há, portanto, que ter atenção ao conteúdo dos contos a que se expõe as crianças – fiquemo-nos pelas “felizes” adaptações e guardemos os originais para mais tarde.
Um estudo norte-americano revela ainda que um em cada cinco pais deixaram de ler certos contos aos seus filhos por estes serem “demasiado assustadores” ou “impróprios”, reporta o The Telegraph.
A investigação envolveu dois mil adultos e permitiu elaborar uma lista dos 10 contos menos lidos a crianças atualmente:
1. Hensel e Gretel – fala de duas crianças abandonadas na floresta, o que pode assustar as crianças
2. João e o Pé de Feijão – considerado muito irrealista
3. O Homem de Gengibre – desconforto em explicar que o homem de gengibre é comido por uma raposa
4. Capuchinho Vermelho – desconforto em explicar que a avó foi comida viva por um lobo
5. Branca de Neve e os Sete Anões – o termo “anão” foi considerado inapropriado
6. Cinderela – visão antiquada da mulher a cingir-se às tarefas domésticas
7. Rapunzel – problemas em explicar que uma rapariga pequena foi raptada
8. O Anão Saltador – não querem ler aos filhos sobre execuções e raptos
9. A História dos Três Ursos – dá uma ideia errada do conceito de “roubar”
10. A Abelha Rainha – o nome de um personagem – Simpleton, traduzido para “simplório” – é inapropriado
SERÃO OS CONTOS DE FADAS BOAS OU MÁS INFLUÊNCIAS?
A resposta não é certa. E para a tentar responder, devemos ter em conta uma série de coisas:
Os contos de fadas estimulam a criatividade e o pensamento crítico. São uma forma de escapismo e são parte integrante da cultura popular e da literatura.
Privar as crianças dos contos de fadas significa privá-las de um aspeto cultural muito rico e de todos os benefícios e alegrias que estes também lhes podem trazer.
Na maior parte das vezes, as crianças vão ser capazes de distinguir o que é história e o que é realidade. Ao mesmo tempo, os contos de fadas são apenas uma pequena parte de uma quantidade enorme de estímulos a que as crianças são expostas durante a infância.
Será que têm, portanto, um papel assim tão significativo nas suas vidas?