Quem matou Amílcar Cabral?

Amilcar Cabral em Boké 1971 – guerra colonial na Guiné

Quem matou Amílcar Cabral?

Na noite de 20 de janeiro de 1973 um velho Volkswagen «Carocha» rodava placidamente pelas sonolentas ruas de Conacri, a capital da República da Guiné, uma antiga colónia francesa da África Ocidental independente desde 1958 sob a liderança de Sekou Touré e do seu partido único, apoiado pela União Soviética embora defendendo oficialmente uma orientação de não-alinhamento com qualquer dos dois blocos que pontificavam no mundo da Guerra Fria. A noroeste deste país montanhoso pouco maior do que Portugal e com uma população equivalente à nossa em números, e como que prolongando a sua geografia, localizava-se a pequenina Guiné Portuguesa, hoje Guiné-Bissau, então teatro de uma assanhada guerra que durava desde há uma década, opondo os combatentes do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) ao Exército português.

O já muito rodado Volkswagen, transportando um casal, arrancara das imediações da Embaixada da Polónia, onde decorrera nessa noite uma receção, e, depois de ter percorrido algumas ruas arborizadas, estava prestes a deter-se junto da residência dos seus ocupantes.

De repente, o seu condutor foi encandeado pelos faróis de um jipe Land Rover, de onde saltaram alguns homens armados de espingardas automáticas Kalashnikov, que se lhe dirigiram em tom ameaçador. O condutor do Volkswagen era o cabo-verdiano Amílcar Cabral, um dos fundadores do PAIGC em 1956 e seu presidente desde 1959, engenheiro formado no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa e, apesar de não desempenhar funções governativas, um dos internacionalmente mais famosos e prestigiados líderes políticos africanos. Cabral não teve dificuldade em reconhecer os homens que o ameaçavam. Eram seus correligionários do partido que combatia pela independência da pequena colónia portuguesa vizinha do país de Sekou Touré e que ali em Conacri beneficiava de um ponto de apoio. Estavam baralhadas as cartas, mas o jogo, por conveniências políticas, nunca viria a ter uma clarificação oficial.

Apesar da escuridão, Amílcar Cabral, de 48 anos, reconheceu num dos homens que que lhe apontavam a arma Inocêncio Kany, um comandante do PAIGC. Kany intimou Cabral a segui-lo, o que este se recusou a fazer. Deu então ordem aos que o acompanhavam para que atassem com cordas o líder do partido. Cabral resistiu e foi logo abatido a tiro, diante da mulher, Ana Maria, a outra passageira do automóvel, também ela cabo-verdiana.

Enquanto ocorria este drama, em diferentes locais de Conacri outros grupos armados − liderados por Mamadou N’Djai e João Tomás − prendiam os dirigentes do PAIGC Aristides Pereira, Vasco Cabral e José Araújo, também todos eles cabo-verdianos, e libertavam dos cárceres do partido Mamadou Touré e Aristides Barbosa, detidos sob acusação de traição. A própria Ana Maria, também ativista e com funções de destaque no PAIGC, foi detida pelos seus camaradas.

TESES CONTRADITÓRIAS

Tudo apontava para uma dissidência sangrenta nascida nas próprias fileiras do partido, considerado aliás um modelo de organização graças ao trabalho aturado, à visão política, à autoridade e ao prestígio − inclusive internacional − de Amílcar Cabral. Mas teria sido mesmo assim? O mistério da morte do fundador e presidente do PAIGC nunca viria a ser cabalmente esclarecido, e se no Portugal de então não fez correr muitos rios de tinta isso deve-se apenas ao facto de vigorar a censura à Imprensa.

Mesmo assim, o Diário de Lisboa, citando o Presidente da Guiné-Conacri, Sekou Touré, conseguia contornar os censores e atribuir o crime a «assassinos a soldo, profissionais da subversão, treinados e corrompidos pelos serviços especiais do colonialismo anacrónico», enquanto outro vespertino lisboeta, o República, lograva fazer o elogio do líder assassinado, destacando as suas qualidades de intelectual e lembrando que era «considerado por muitos o Che Guevara africano». A tese do assassínio perpetrado por agentes do colonialismo parecia entrar em choque com a evidência de os seus autores serem elementos da guerrilha independentista, mas essa contradição é apenas aparente se levarmos em conta a eventualidade de os seus mandantes terem prometido em troco dele a independência da Guiné. Tratar-se-ia, para as autoridade colonialistas de Lisboa, de riscar do mapa os elementos cabo-verdianos do PAIGC (aliás, os principais dirigentes do partido) a fim de manter a posse do arquipélago atlântico abrindo mão da problemática colónia guineense.

Uma terceira tese, posta a circular pelos meios colonialistas, apontava como mandante do crime o próprio Sekou Touré, que teria a ambição de englobar no seu país a então Guiné Portuguesa e para quem Cabral constituía um obstáculo.

Na própria noite do assassínio, os conspiradores (porque conspiração existiu mesmo), todos saídos das fileiras do partido de Cabral, foram por sua vez detidos por ordem de Touré, que informou da conjura Samora Machel, líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), que na altura se encontrava em Conacri, e ainda os embaixadores cubano e argelino na capital da antiga colónia francesa, respetivamente Oscar Oramas e Messaoudi Zitouni. Quando interrogados no âmbito de uma comissão de inquérito de que faziam parte, além de Touré, os referidos diplomatas e ainda o jornalista moçambicano de origem goesa Aquino de Bragança (que mantinha boas relações com os movimentos de libertação e escrevia na revista terceiro-mundista de língua francesa Africasia), os detidos acabariam por confessar que haviam agido de acordo com um plano gizado pelas autoridades de Lisboa. Segundo um dos interrogados, Valentino Mangana, o objetivo não era só a eliminação de Cabral, mas também a destruição do PAIGC enquanto força política que englobava Cabo Verde na luta pela independência. O Governo português, segundo Mangana, estaria portanto disposto a conceder a independência à Guiné na condição de o PAIGC ser riscado da superfície da terra e de os seus dirigentes cabo-verdianos serem eliminados ou erradicados. Tornava-se evidente que a polícia política PIDE/DGS da Guiné Portuguesa mexera os cordelinhos e que a luz verde fora dada em Bissau pelo governador e comandante militar general António de Spínola e, em Lisboa, necessariamente pelo próprio Marcelo Caetano, que em 1968 sucedera a Salazar na chefia do Governo. Num artigo publicado na Africasia, Aquino de Bragança afirmava que no crime se encontravam ainda implicados o ministro da Marinha português, contra-almirante Pereira Crespo, os generais Spínola e Costa Gomes (então CEMGFA) e o diretor da PIDE/GGS, major Silva Pais.

UMA GUERRA PERDIDA

Tudo isto faz sentido. Lisboa não se importaria de perder a Guiné e ser-lhe-ia até útil desviar as tropas ali empenhadas para os muitíssimo mais importantes teatros de Angola e Moçambique. A guerra na pequena colónia tornara-se, aliás, nos últimos tempos, um quebra-cabeças.

Prestigiado internacionalmente, Amílcar Cabral era por muitos considerado ‘o Che Guevara africano’

Quando aviões da Força Aérea Portuguesa começaram a ser derrubados pelo PAIGC, tornou-se evidente que a luta estava ali militarmente perdida. Entre 15 de março de 1973 e 31 de janeiro de 1974, cinco aparelhos FIAT G-91 foram abatidos por mísseis de fabrico soviético SAM-7, também conhecidos por Strela. Spínola, desde 1968 à frente dos destinos da Guiné, pediu ao Governo de Caetano aviões mais eficazes do que os FIAT e, obviamente, mísseis. Chegou assim a estar prevista a aquisição de aviões Mirage, de fabrico francês; e quanto aos mísseis, foram mesmo compradas grandes quantidades de dispositivos Crotale, igualmente franceses, tendo oficiais portugueses chegado a frequentar cursos para a sua utilização. A Revolução de 25 de Abril de 1974 interromperia estes projetos.

As Forças Armadas Portuguesas não possuíam mísseis, nem tinham tido até então necessidade de os possuir. O inimigo guerrilheiro, em qualquer um dos teatros de operações de Angola, Moçambique e Guiné, era notoriamente mais fraco, e as campanhas angolanas de 1961 tinham mesmo sido travadas contra forças apetrechadas com armamento rudimentar. Agora, tudo mudava de figura.

TREZE ANOS DE SOLIDÃO

Tudo começara no então já distante ano de 1961. No dia 4 de fevereiro, as prisões e esquadras de Luanda eram atacadas por membros do pró-soviético MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Seguiu-se uma chacina praticada por brancos nos musseques (o equivalente a bairros de lata) da cidade. A 15 de março, fora a vez de a pró-americana UPA (União dos Povos de Angola) espalhar o terror e a morte nas fazendas dos Dembos. Salazar enviou tropas para a colónia, mas após vitórias fáceis obtidas entre maio e setembro contra inimigos mal armados, o MPLA abria novas frentes em Cabinda e no Leste. Em 1966 pegava em armas a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que mais tarde enveredaria pelo colaboracionismo com Lisboa. Em meados da década, o MPLA era já considerado pela Organização de Unidade Africana (OUA) o legítimo representante do povo angolano.

Depois da eclosão da guerrilha do PAIGC na Guiné, em 1963, do outro lado do continente, em Moçambique, a Frelimo iniciara a luta armada em 1964, em Niassa e Cabo Delgado, abrindo depois nova frente em Tete. Comandadas entre 1969 e 1972 pelo general ultradireitista Kaúlza de Arriaga, as tropas portuguesas envolver-se-iam durante meses na Operação Nó Górdio, a de maior envergadura da guerra, que não teve o êxito pretendido. A denúncia do massacre de Wiriyamu feita pelo sacerdote anglicano Adrian Hastings no jornal londrino The Times teve larga repercussão internacional.

Voltando à Guiné, a ação psicológica desenvolvida por Spínola não impediu a proclamação unilateral da independência, em setembro de 1973. Antes tinha sido lançada a polémica Operação Mar Verde, um ataque à vizinha Guiné-Conakri, «santuário» do PAIGC e cenário do assassínio de Amílcar Cabral.

Estabelecendo um rápido balanço deste longo conflito que marcou profundamente a sociedade lusa nas décadas de 60 e 70 do século XX, 800 mil jovens − quase um milhão! − foram mobilizados entre 1961 e 1974. Desses, quase 9 mil morreram e perto de 30 mil ficaram estropiados. Um número não quantificado acusaria para sempre os efeitos psíquicos da guerra. Não houve família sem o seu combatente em África. Muitas ficaram enlutadas, muitíssimas viram-se a braços com problemas irresolúveis.

A Guerra Colonial determinou também a queda do Estado Novo e o regresso da democracia. Não sabemos quanto tempo mais teria durado a ditadura se não tivesse havido esta guerra, mas não há dúvida de que, ao gerar o descontentamento dos oficiais mais politizados e forçar a mobilização de estudantes contestatários do regime, ela foi o fator mais decisivo para a eclosão do 25 de Abril de 1974.

Texto publicado na VISÃO História nº 20, de abril de 2013

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