A primatóloga espanhola, diretora-executiva do Instituto Jane Goodall na República do Congo e administradora e veterinária-chefe do Centro de Reabilitação de Chimpanzés Tchimpounga, um dos maiores santuários de chimpanzés da África, falou com a VISÃO sobre a sua vida a estudar e a proteger os chimpanzés.
Rebeca Atencia é uma das protagonistas da série “Jane Goodall: a esperança para os chimpanzés”, que se estreia este domingo, 11 de setembro, às 16h, no canal Odisseia. Este é o primeiro episódio de um documentário em cinco partes que conta e mostra o trabalho da lendária primatóloga ao longo de 30 anos.
Como foi parar ao Congo, há quase 20 anos, com o objetivo de proteger os chimpanzés?
Desde pequena que sempre amei animais. Acabei por estudar medicina veterinária. Depois tive a oportunidade de trabalhar num parque de animais. Mas quando vejo os chimpanzés em cativeiro, atrás das grades, fico de coração partido… Quando olhava para eles, só pensava em ir para África e libertar chimpanzés. Um dia, precisavam de alguém para trabalhar num projeto no Congo e eu fui. Estava a trabalhar lá há um ano, no terreno, num programa de libertação de chimpanzés na floresta, quando conheci a Jane. A Jane tinha chegado ali, a um local isolado, depois de viajar vários dias por barco e carro… Fizemos clique e a Jane perguntou-se se não queria trabalhar para ela.
Quais foram as suas primeiras impressões sobre a Jane Goodall?
Na verdade, conhecera-a dois anos antes, numa conferência em Espanha. Mas dessa vez, no Congo… Estava a falar com ela, com imensa paixão, a contar-lhe histórias de chimpanzés e de como eles se integravam na selva. E a Jane estava realmente a ouvir-me! E quando alguém com o estatuto dela me faz perguntas, a uma miúda de 20 e poucos anos… O que mais gosto na Jane Goodall é que ela acredita mesmo nas pessoas, quando elas têm paixão no coração, e ajuda essas pessoas a fazerem o seu caminho. E a Jane é uma mente jovem num corpo velho. Tem imensa esperança e está sempre a pensar no futuro.
A Jane teve problemas no início da sua carreira por ser mulher, no que era então um mundo de homens. A Rebecca também sentiu esse sexismo?
Sim. Sobretudo por ser uma mulher jovem. Temos de provar constantemente do que somos capazes de fazer. Temos de mostrar mais do que os outros. Isso é particularmente assim no meio da floresta, com os perigos que vão desde os elefantes a avançarem contra nós às cobras venenosas. Há que demonstrar que conseguimos fazer o nosso trabalho na selva, nos pântanos, com água até ao pescoço, à chuva, e que conseguimos ser boas líderes.
O que a surpreendeu mais nos chimpanzés quando começou a trabalhar com eles? Mais humanos? Menos humanos? Têm os mesmos defeitos e virtudes?
Tantas coisas me surpreenderam! Para já, são muito inteligentes. Mas admito que, a primeira vez que estive frente a frente com um em liberdade, tive medo. Sabia do que ele era capaz, até porque os chimpanzés em cativeiro são perigosos. Mas ele respeitou o meu espaço. Eles fazem isso: respeitam o nosso espaço. E eu tentei logo comunicar com eles, e eles aceitaram-me e comunicaram comigo. Até me avisavam quando viam perigo, como elefantes, para me proteger. Eles são nossos parentes, e de certa forma, quando estamos na selva ao pé deles, é como se voltássemos atrás no tempo, até à pré-história, e encontrássemos alguém como nós, mas que naquele ambiente, na floresta, são mais inteligentes do que nós.
Um chimpanzé salvou-lhe a vida. O que aconteceu?
Sim, o Kutu. Conheci o Kutu quando tratei dele durante sete dias, a limpar as feridas e a dar-lhe medicação, depois de ele se ter magoado. Uns meses mais tarde, estava eu noutro local a trabalhar, fiz um barulho com uma ferramenta, a bater numa árvore, de que um chimpanzé não gostou. O chimpanzé saltou para cima de mim e mordeu-me com força na cabeça. Ouvi um “crack” e senti um líquido quente a escorrer. Pensei logo: “Meu Deus, ele partiu-me a cabeça e estou no meio da selva”. Então esse chimpanzé começou a fazer sons para outros chimpanzés me atacarem. Mas de repente apareceu o Kutu, que se pôs à minha frente e ordenou aos chimpanzés para atacarem o que me tinha mordido. Eu estava a tremer e a pensar: “Ele está a proteger-me!” O Kutu virou-se nesse momento para mim e pelo olhar dele percebi que me estava a mandar fugir. Salvou-me a vida. Mais tarde, tive um filho e chamei-o Kutu.
Depois disso, não teve medo de voltar à selva?
Sim, muito medo, durante algum tempo. Sabia que tinha ali um inimigo. Tal como com as pessoas, alguns chimpanzés podem ser nossos amigos e outros, nossos inimigos. Sempre que encontrava o chimpanzé que me tinha atacado, percebia a hostilidade. É muito difícil trabalhar na proteção de uma espécie de que se tem medo.
Como é que as coisas têm evoluído no Congo, no que respeita à proteção dos chimpanzés?
Quando cheguei, ainda se via carne de chimpanzé à venda nas estradas, e a polícia não fazia nada. Mas, com uma estratégia de educação, de trabalhar com as comunidades, de dar meios à polícia, as coisas mudaram muito. E agora outros países viram o sucesso do Congo e querem emulá-lo. Já fui chamada para Angola e para a Guiné-Bissau para resgatar chimpanzés. Estamos a ver o bom resultado do nosso trabalho.