Com as alterações climáticas a reduzirem a precipitação em Portugal, a água é um bem cada vez mais escasso, alerta Ana Luís, vogal executiva da AdP VALOR, do grupo Águas de Portugal. “O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas indica que a região da bacia do mediterrâneo é das regiões do globo mais afetadas pelas alterações climáticas. E isso já se sente em Portugal: a precipitação diminuiu 20% e temos sentido uma maior frequência de secas. Mas temos uma distribuição assimétrica dos efeitos: a norte da bacia do Tejo, os cenários apontam para um redução de precipitação média anual entre 5 e 20%. a própria bacia do Tejo será de 10 a 40%. A sul, entre 20 e 50%. Isto é tremendo! Significa que, no final do século, um ano médio será equivalente ao que hoje chamamos hoje de ano de seca.”
Resta-nos olhar para outras fontes de água, com o tratamento de águas residuais para reutilização à cabeça, o que, aliás, já começou a ser feito, diz a gestora, na Conversa Verde, quando se celebra o Dia Mundial da Água. “As necessidades do abastecimento urbano serão sempre garantidas. Mas impõe-se já uma nova visão de gestão integrada dos recursos hídricos. Temos de perceber se as origens atuais são suficientes. Se não, temos de as reforçar, nomeadamente reforçando o armazenamento. E podemos recorrer a fontes não convencionais, como a água residual tratada para reutilização ou a dessalinização.”
O problema será sempre a relação custo-benefício, porque a tecnologia existe e já está suficientemente madura. “Todas as impurezas de uma água reciclada conseguem ser resolvidas. O problema não é a tecnologia. Obviamente que o custo de produzir uma água residual tratada é diferente de tratar água da natureza, e dessalinização ainda mais. O custo económico tem de entrar nestas contas.”
É natural que o custo da água seja afetado, se o País tiver de recorrer cada vez mais à água reciclada. “Noutros países há tarifas bem mais elevadas. Na Dinamarca, as pessoas pagam dez euros por metro cúbico. Se tivermos de recorrer a outras fontes, há um valor a pagar para termos o serviço. Daí a necessidade de uma gestão cuidada e coordenada das diferentes fontes.”
Pensar nos nossos filhos
Citando inquéritos feitos pelo grupo AdP, Ana Luís garante que hoje “já há uma maior sensibilização para a utilização da água” do que há umas décadas. Mas há também um paradoxo. “Como o serviço evoluiu muito, e as novas gerações não apanharam as dificuldades dos nossos avós, dão a água como garantida. Nem em situações de seca falta água na torneira… Mas a água não é garantida e cabe a todos fazer um esforço.”
Esse esforço tem de ser incentivado através de campanhas de sensibilização que apontem, simultaneamente, à cabeça e ao coração. Por um lado, “devemos socorrer-nos de factos científicas, e há imensas evidências científicas sobre as alterações climáticas”. Por outro, “temos de humanizar mais as mensagens”. “O planeta aguenta tudo, a espécie humana é que não. Temos de falar nos seres humanos que nos são mais queridos. Tenho três filhos. No final do século serão idosos. E as projeções das alterações climáticas, se nada for feito, são desastrosas. É isto que eu quero para os meus filhos? Isso impele-me a querer fazer qualquer coisa.”
A gestora falou também das perdas de água nas redes públicas de abastecimento urbano, que atinge valores astronómicos em muitos locais (há concelhos nos quais 80% de água não é faturada), dando Lisboa como exemplo a seguir. “O concelho de Lisboa, que a AdP gere em baixa, tem água não faturada na ordem dos 10%, o que é um sucesso, face ao resto. O segredo da EPAL foi ter uma estratégia bem definida, implementada em 2005.” Os 1 400 km de rede foi dividida em 150 zonas, explica, o que facilita a deteção de perdas, reduzindo a água não faturada de 23% para 10%. Mas, continua, “devia haver uma renovação preventiva de 1 a 2% por ano, dada a idade das redes. Infelizmente, há muitas redes que estão a chegar a um estado em que praticamente toda a rede devia ser substituída.”
O ‘milagre português’
Portugal é dos países que mais evoluiu em termos de tratamento e qualidade das águas, circunstância que é conhecida na Europa por “milagre português”, diz Ana Luís, explicando o percurso do País. “Há 30 anos, com a entrada de Portugal da CEE, havia metas a atingir e fundos disponíveis para isso, mas o setor estava muito fragmentado, com sistemas muito dispersos. Não havia escala para pôr em marcha os investimentos necessários. Foi aí que se criou a AdP e as concessões intermunicipais. Foram investidos €7,4 mil milhões nessas concessões, em todos os ativos que compõem o sistema. E isso contribuiu para que a boa qualidade da água nas torneiras passasse de 50%, em 1993, para 99%. A população servida por saneamento passou de 30 para 86%. E as praias com Bandeira Azul estão sempre em número crescente e já são quase 400.”
Mas não podemos descansar, julgando que o trabalho ficou feito, acrescenta. “Temos muitos desafios novos pela frente. Agora temos o desafio de operar os sistemas de forma mais eficiente, torná-lo mais resiliente, circular e digital.”
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