Na Idade Média tomava-se pouco banho. Consta que toda a família tomava banho na mesma tina de água, começando pelo chefe de família. Os últimos eram os bebés, para quem sobrava uma água tão suja e turva que não se conseguia distinguir o bebé da água. Temia-se, pois, que, ao vazar a tina, o bebé pudesse ir com a água do banho.
A política florestal da União Europeia formalmente não existe, pois a floresta não está incluída nos tratados da UE. Compete, por isso, aos Estados Membros, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, decidirem nesta matéria. No entanto, por muitas portas travessas, e nem sempre com a devida transparência (qual água em que muitos já tomaram banho), a União Europeia tem vindo a construir um enorme, intrincado e burocrático edifício normativo em matéria de “política para-florestal”, que condena à efetiva marginalidade a ação de cada Estado Membro. Quando dermos por isso, a possibilidade de termos uma política florestal adequada às nossas condições naturais (elas próprias em mudança) e às nossas necessidades (sociais, territoriais, ambientais e económicas) já terá sido deitada fora com a água do banho.
Esta circunstância apresenta uma agravante: o conjunto de propostas europeias de que falo, e que adiante identificarei, são estruturalmente desequilibradas. E a razão é simples: é que utilizam a Floresta como um meio para alcançar outros objetivos (sempre nobres), e nunca se centram na Floresta em si mesma. Dir-se-á que para isso existem as políticas florestais nacionais. Seria assim se, por imperativo das condicionantes geradas pelas normas a que me refiro, sobrasse algum terreno para atuação. Esse terreno é, contudo, cada vez mais escasso, estando as políticas florestais nacionais condenadas a uma lenta asfixia.
Sejamos claros, e politicamente incorretos, em relação ao que está em causa: todas as estratégias, os non-papers, as propostas de diretivas e de regulamentos europeus a que nos estamos a referir, alguns já aprovados, outros a caminho, têm um foco exclusivo na dimensão ambiental e climática. Não me interpretem mal: não estou a dizer que estas dimensões não são importantes. O que digo é que, ao resumir a sua preocupação a estas duas dimensões, a União Europeia e os Governos dos Estados Membros encurralam a política florestal dos países europeus na Política Ambiental da União Europeia. Este facto configura uma evidente apropriação coletiva das florestas de cada país da UE, colocando sobre os seus proprietários e sobre as fileiras económicas que eles integram a obrigação de suportar, de forma completamente desproporcionada, os custos de uma descarbonização necessária, mas para cuja génese muito pouco contribuíram.
Repito, para que não restem dúvidas: não se discute a importância das dimensões ambiental e de transição climática associadas à Floresta. O que é um completo nonsense é a ausência das dimensões social e económica do enquadramento de uma atividade que ocupa vastas áreas do nosso território, que integra importantes fileiras económicas (essenciais para aumentar a circularidade da economia), que assenta em milhares de pequenos proprietários e que gera milhares de empregos na nossa economia.
Em resumo: uma parte significativa da legislação em causa é (1) “abusiva” por falta de competência das instâncias comunitárias para a produzir, e (2) desequilibrada, não procurando compatibilizar as diversas dimensões a que uma Floresta gerida de forma sustentável deve dar resposta.
Comecemos pelo “abuso” por parte das instâncias comunitárias ao disporem em matéria florestal. Este “abuso” não é relevante por uma mera questão de forma. Na União Europeia, a aplicação do princípio da subsidiariedade garante (ou devia garantir) que a UE apenas intervém quando a sua ação for mais eficaz do que a ação dos Estados Membros. Nas Florestas sempre se entendeu (e bem) que, a heterogeneidade das condições de solo e de clima e a diversidade das espécies presentes ao longo do território europeu eram razões suficientes para que as políticas florestais fossem decididas em cada Estado Membro. E com excelentes resultados: na Europa, entre 1990 e 2020, a área florestal aumentou à taxa de 2,3%/ano (num total de mais 38 milhões de hectares), com destaque para o contributo das florestas plantadas (com aumento de 30 milhões de hectares). Nesse mesmo período, o volume de madeira cortada para a indústria aumentou e, em simultâneo, aumentou também o stock de carbono na floresta europeia (à taxa média de 1,24%/ano). Ou seja, o respeito pelas políticas florestais nacionais dos diversos Estados Membros estava a contribuir decisivamente para que as Florestas cumprissem um importantíssimo papel ambiental, enquanto garantiam o fornecimento de matéria-prima para um conjunto de indústrias essenciais para a economia europeia, e basilares para a substituição de produtos de origem fóssil. Note-se que só a Floresta europeia que abastece a fileira da pasta e do papel promove o sequestro direto de cerca de 447 milhões de toneladas de CO2/ano, e evita a emissão de mais 410 milhões de toneladas de CO2/ano pelo efeito de substituição de produtos de origem fóssil. Nesta Europa das Nações, o contributo da gestão florestal sustentável para a conservação da biodiversidade estava também a ser bem-sucedida. Porquê, então, esta repentina “usurpação” por parte de Bruxelas? Confesso que não tenho uma resposta clara. Parece-me tratar-se de algum exibicionismo de poder num domínio que, com populismo quanto baste, se presta bem a satisfazer os fortíssimos lobbies ambientais e a onda green(washing) que atravessa a nossa sociedade.
O segundo ponto tem a ver com o desequilíbrio de muitos dos instrumentos de política que, por portas travessas, se constituem cada vez mais como uma política florestal europeia. Como atrás referi, o desequilíbrio em causa decorre do olhar monofocal que é colocado sobre a floresta, superlativando a questão “carbono e transição climática” e reduzindo a escombros as restantes dimensões. É preocupante que assim seja, pois o papel económico e social das fileiras de base florestal é crucial para o presente e para o futuro da Europa em geral, e de Portugal em particular. Os exemplos deste desequilíbrio são inúmeros, começando desde logo pela “nova estratégia europeia para as florestas”, toda ela focada no Carbono, não procurando estabelecer o necessário equilíbrio que garante que os gestores da Floresta em cada país nela encontram enquadramento para a gestão florestal sustentável, para a compatibilização dos usos, para o papel de substituição das matérias-primas fósseis e para o crescimento do bem-estar da sociedade europeia. No mesmo sentido vai a Proposta de Regulamento focada no “restauro da natureza”, que tende a constituir-se num quadro duvidoso destinado a qualificar práticas de gestão florestal transversais a todo o território europeu e a todas as tipologias de floresta. Na ânsia do “one size fits all”, o desequilíbrio é manifesto, tornando a legislação impraticável ou destruindo de forma cega a realidade pré-existente. Questões muito idênticas se levantam em relação ao “regulamento da desflorestação e da degradação florestal”, que define e pretende aplicar de forma simplista conceitos como o de “degradação florestal” a uma floresta heterogénea e diversa como é a floresta europeia. Adicionalmente, pelas exigências que coloca aos diversos operadores, é uma norma que pura e simplesmente não é exequível. Ou seja, na sofreguidão de soluções milagrosas (e, portanto, com traços de evidente populismo) perde-se a oportunidade de ter um instrumento equilibrado de combate à desflorestação que realmente impacta o nosso planeta. E, pelo caminho, colocam-se mais umas restrições à atividade florestal.
Outras propostas de documentos poderíamos referir, desde a “revisão do LULUCF”, à “estratégia para a biodiversidade”, passando pela revisão da “diretiva das energias renováveis”, todas elas marcam o terreno às florestas (sem nunca se focarem nelas) e todas elas assumem o ambiente e o clima como valores absolutos que tudo justificam. As realidades nacionais e locais são relegadas para segundo plano, definem-se soluções simplistas e de aplicação transversal, e descuram-se os impactos nas vidas das pessoas e das empresas.
Este desequilíbrio está bem patente nas declarações de um ex-Ministro do Ambiente e da Ação Climática, para quem “as florestas tinham de ser olhadas pelas copas” (nas quais é absorvido o CO2) e não pelos troncos”. Acredito que seja possível olhar as florestas pelas copas, pelos troncos, pelas raízes, pelo solo e por tudo o mais que as constitui. O equilíbrio não é uma impossibilidade.
Esperemos não chegar nunca ao ponto em que aquele que sempre foi um dos maiores trunfos da floresta – a sua capacidade de sequestrar e armazenar Carbono – se torne numa causa para o seu definhamento na Europa.