Karsten de Vreugd, cineasta, e Hidde Boersma, biólogo e jornalista de ciência, decidiram remar contra a maré e mostrar um lado dos organismos geneticamente modificados (OGM) que costuma estar arredado do discurso dominante – o dos possíveis benefícios para o ambiente e para a saúde. Assim nasceu Well Fed (Bem Alimentado), um documentário, lançado em 2017, que tenta desfazer vários mitos sobre a tecnologia genética na agricultura.
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Não foi um parto fácil: em conversa com a VISÃO VERDE, Boersma e de Vreugd falam das dificuldades em encontrar financiamento para um filme que põe em causa as crenças da maioria do público. “A noção de que os OGM são maus é o que as pessoas gostam de ouvir. É por isso que os cineastas fazem filmes contra os OGM, porque sabem que vão ser populares.”
Além da entrevista, a VISÃO VERDE publica também aqui o documentário.
Porque é que as pessoas não confiam nos OGM?
Hidde Boersma – Há duas razões. A primeira é que há um pouco esta atmosfera de que a tecnologia foi demasiado longe. Nós provocámos as alterações climáticas, há muita biodiversidade perdida, e a razão para tudo isso é a tecnologia. Foi o pensamento de que a tecnologia só pode ser má, combinado com a reação ao primeiro OGM, que foi a soja Roundup Ready, que era resistente ao herbicida Roundup. Esta é uma das aplicações [que os OGM podem ter] de que menos gosto. E está também muito ligada a Monsanto e à desflorestação na Amazónia. Foi aí que as organizações não governamentais, legitimamente, entraram em ação e disseram que isso era algo que não queriam.
Existem estudos suficientes para assegurar que os OGM não causam problemas de saúde?
Karsten de Vreug – Sim.
HB – Os OGM estão no campo há cerca de 30 anos. Há muitos estudos nos laboratórios, claro, e também nos terrenos, e não há efeitos mais prejudiciais do que os da modificação genética tradicional. Eu sou biólogo e já fiz muita modificação genética, ou engenheria genética, como lhe chamam: o mecanismo não é muito diferente do que usávamos antes. As pessoas acham que este método é muito diferente da modificação clássica e que tem diferentes resultados, mas se trabalhares com ele, se fores biólogo, se te interessares pelo ADN, saberás que os efeitos no ADN são similares. Não há nada que faça com que esta ferramenta seja mais prejudicial do que a tradicional.
Não são mais prejudiciais do que os alimentos não modificados?
KV – Se se olhar para o Bangladesh, pode argumentar-se que é o contrário: será que as beringelas “normais” podem danificar mais a nossa saúde do que as geneticamente modificadas? E na verdade sim, podem. Porque há mais pesticidas borrifados nas beringelas não GM, têm mais infeções, mais doenças. Se olharmos para esse exemplo, podemos dizer que uma beringela GM é mais saudável do que as outras. Não sei se isso acontece com todos os produtos, mas neste caso, são mesmo mais saudáveis.
HB – Devíamos investigadar cada aplicação em particular. Temos o caso das beringelas, o dos grãos de soja, que têm de ser verificados outra vez. Não é o método de modificar o genoma que os faz serem bons ou não. Há alguns OGM que não valem a pena, mas podem haver produtos não alterados que também não. Por isso quando, há um novo produto pronto para ser lançado no mercado, tem de passar por um longo processo de testes em animais e em humanos. Há sempre algo que pode não ser bom, mas, em geral, não há diferença entre um OGM e um não OGM. Os OGM são tão saudáveis quanto os não OGM.
A engenharia genética pode tornar a agricultura mais sustentável?
HB – Já o faz. Já há muitos estudos que demonstram isso. Esta beringela GM, por exemplo, é resistente a uma larva, e por isso faz com que as colheitas não se percam nem seja preciso usar inseticida para matar a larva.
KV – Mais uma vez, temos de olhar para cada aplicação em particular, para entender se é prejudicial ou representa uma melhoria para o ambiente. O Roundup não está a melhorar a saúde…
HB – Nem a tornar a agricultura mais sustentável. A beringela BT e o milho BT sim, mas um round up ready… Meh…
Para fazer o filme, viajaram para o Bangladesh. Porquê escolher este país e não outros mais desenvolvidos, como os EUA, Brasil ou Canadá, líderes na produção mundial de OGM?
KV – Quando falamos de OGM, uma coisa que ouvimos com frequência é que só as empresas com muito dinheiro e grandes infraestruturas conseguem entrar neste mercado dos OGM, e não é esse o caso.
HB – Quem está contra o milho BT na América e na Europa, e contra as práticas dessas grandes empresas, tem de perceber como é que isso vai influenciar as vidas em Bangladesh. Uma pessoa pode ser contra os OGM porque não gosta como são aplicados nos EUA. Mas tem de se certificar que não está contra os OGM no Bangladesh. Claro que podem ser contra a Monsanto, mas certifiquem-se que apoiam a aplicação dos OGM feita no Bangladesh.
Os OGM podem tratar a fome e as deficiências de vitaminas nos países mais pobres?
KV – Sim, podem. Há produtos com um ingrediente extra que podem combater a subnutrição. O arroz dourado é um exemplo muito claro de algo que pode ser comido de manhã, à tarde e à noite, e que tem vitaminas extra. [O arroz dourado produz um precursor da vitamina A; mais de meio milhão de crianças morre anualmente devido à deficiência de vitamina A e outro meio milhão ficam cegas.] Depende, no entanto, de como é distribuído, de todas as políticas e burocracias, e do facto de as pessoas não o querem comer… Há, por isso, vários obstáculos além das técnicas de criação que podem influenciar o processo.
HB – Há muitos projetos em África, com zinco e magnésio, também.
A Greenpeace e outras organizações ambientalistas tentam boicotar os testes com OGM em países menos desenvolvidos, sobretudo o arroz dourado. Uma das razões apresentadas no vosso documentário é que, se correr bem, as pessoas vão ver que os OGM são uma coisa boa e, portanto, mais OGM entrarão. Não é uma justificação paradoxal?
HB – Pois. Está tudo bem, as crianças podem morrer porque nós não gostamos de OGM? É chocante as pessoas pensarem assim, é um crime.
Há quem não questione a ciência, mas é contra os OGM por causa do controlo das sementes, já que as patentes estão nas mãos de grandes empresas. Este é um argumento válido? Como lutar contra o possível monopólio de grandes multinacionais nessa área?
KV – Primeiro, ter uma patente ou controlar a indústria das sementes pode acontecer a parte dos OGM. Isso tem a ver com a agricultura moderna. Não tem de ser uma consequência dos OGM. Dito isto, tanto eu como o Hidde estamos a favor de uma economia open source, não só nas sementes, mas em tudo, porque os países em desenvolvimento irriam beneficiar mais se pudessem desenvolver as suas próprias técnicas em vez de ter de as comprar a outras empresas. Agora ainda é caro, porque há muitas leis que dificultam aos países em desenvolvimento a criação de programas próprios.
Outro argumento contra os OGM é que os alimentos são colocados no mercado rapidamente, sem tempo para as espécies se adaptarem ao ecossistema, o que pode ter consequências imprevisíveis para o ambiente. É uma preocupação válida?
HB – Na verdade, esses produtos demoram muito a chegar aos mercados, mais do que os produtos modificados tradicionalmente. Nada no nosso prato se encontra na natureza, dos brócolos às couves-de-bruxelas. Já é demasiado diferente [da planta original], e nós adaptámo-nos a isso. Para mim não há diferença entre uma colheita GM e um brócolo tradicional, que já nem é tradicional. Nunca vimos um brócolo na floresta porque não há brócolos na natureza.
KV – E não é só isso. Pode dizer-me uma coisa na agricultura que seja previsível? Há muitas coisas que não são previsíveis, o facto de eles dizerem que é imprevisível… Não, não é! Faz-se num laboratório, testa-se, depois há um terreno maior para mais testes. Por isso, quando se prevê que vai ser seguro, vai ser seguro.
Muitos desses OGM são resistentes a herbicidas. Não existe o risco dos agricultores usarem mais esse tipo de químicos e com menos critérios?
HB – Sim, não sou grande fã desses feijões de soja Roundup. Essa é uma das aplicações, porque as ervas daninhas são das principais preocupações na agricultura. Há muitos agricultores, especialmente os mais pequenos, que acabam por perder metade das suas colheitas porque não têm acesso aos herbicidas. Por isso, esses produtos podem ser benéficos, mas por outro lado, se combinarmos isso com aquela questão da Amazónia, por exemplo… não é uma das minhas aplicações favoritas. E sim, muitos acabam por usar mais Roundup devido a este OGM, e isso é algo de que não gosto.
KV – Há uma batalha constante entre praga e produto para ganhar a corrida e não morrer.
Dá para contornar este problema da resistência a herbicidas e inseticidas?
KV – Há várias coisas a fazer para desacelerar esse processo. Dá para ter uma rede por cima das colheitas ou construir uma estufa… Há muitas coisas que se podem fazer para abrandar a resistência a estes produtos.
Também há robôs que eliminam as ervas daninhas…
HB – Sim, e se isso eliminar a necessidade de herbicidas, seria um mundo ainda melhor, claro.
Por que é que a UE é mais resistente aos OGM do que os EUA e outras regiões?
HB – A questão é: nós de alguma maneira, na Europa, perdemos a fé no progresso científico, e isto deve-se principalmente às organizações ambientais nos anos 70 nos terem doutrinado sobre como o progresso foi a fonte de todos os males, como foi essa a causa das alterações climáticas e do colapso da biodiversidade. Por isso, sinto mesmo que na Europa perdemos a fé na evolução. Este princípio de que mais vale prevenir do que remediar está, de momento, muito enraizado na União Europeia. Acho que nos tornámos um pouco num “museu do progresso”.
KV – Eu concordo e discordo ao mesmo tempo. Se tens um telemóvel que está estragado, e tens de ficar 20 minutos à espera numa linha telefónica de apoio, chega a um ponto em que eu, como consumidor, sinto que as empresas não se importam, e vejo isto em todas as grandes corporações. Se comprarmos um iPhone que não traz adaptador porque eles dizem que querem salvar o ambiente, sabemos que estamos só a ser enganados. Por esta razão, tem de haver um diálogo sério, que está a acontecer, aliás, mas tem de ser nos termos e sobre os temas corretos. Sendo que os países em desenvolvimento são as vítimas neste cenário…
Além disto, a UE aposta mais na agricultura biológica, com o argumento da sustentabilidade. Mas no vosso documentário mostram que a agricultura bio tem maior pegada carbónica, porque precisa de mais 20% de área para produzir a mesma quantidade. Então porquê essa aposta?
HB – A razão pela qual gostamos do que é bio é a ideia de que podemos ter o controlo da produção de alimentos. Mas a agricultura como a que temos agora está nas mãos das grandes empresas e não é nada transparente. Se fizermos agricultura bio ou agricultura florestal, sentimos que estamos a recuperar o controlo da nossa alimentação, e isso sabe bem, eu percebo… Mas é incorreto, cientificamente, pensar que é mais sustentável do que a agricultura tradicional. Não tem a ver com sustentabilidade, tem a ver com recuperar controlo, sentir que temos valor.
KV – E é preciso ser-se privilegiado para o fazer…
HB – Sim, claro!
KV – Porque é mais caro, tens de te deslocar de carro para os mercados locais, normalmente não se consegue fazer isso na cidade… Comprar produtos bio é um luxo!
Foi difícil encontrar financiamento para um documentário que se desvia da narrativa padrão?
HB e KV – Sim!
KV – Na verdade podia ser fácil, a Monsanto teria pago muito para fazermos este documentário, mas ele [Hidde] não queria aceitar dinheiro da Monsanto.
HB – O que significa que trabalhámos pelo menos 3 meses, acho eu, para nada.
KV – E agora continuamos pobres!
HB – Agora continuamos pobres, sim.
Não há muitos documentários nas plataformas de streaming que mostrem este outro lado, como o Well Fed. Porquê?
KV – Temos de compreender que plataformas como a Netflix não estão interessadas em fazer arte, elas existem para fazer dinheiro, e o que faz dinheiro é o que as pessoas querem ver, e o que as pessoas querem ver é o que elas entendem, e é por isso que este é um mundo muito, muito merdoso.
HB – Mas isto é verdade. Esta noção geral de que os OGM são maus é o que as pessoas gostam de ouvir. Os cineastas fazem filmes contra os OGM porque sabem que vão ser populares.
KV – Eu acho que eles provavelmente também acreditam nisso [que os OGM são maus].
HB – Sim, provavelmente.
KV – A Netflix programa os cineastas. E quem diz Netflix, diz Amazon, Hulu, são todas as plataformas, porque as pessoas vão ver. E depois esses documentários mostram números e factos de uma forma clara… Por isso, é preciso que os cineastas digam: “Fuck you, nós vamos fazer esta merda na mesma!”
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