“Querem ir descansar um bocado? É melhor aproveitarem agora, porque é o que vamos fazer todos.” Para quem, como nós, tinha acabado de entrar na Gaivota do Mondego, naquela noite já alta de um domingo de junho, a sugestão de Mário Santos parecia estranha. Mas uma coisa que se aprende rapidamente é que os conselhos de quem anda na pesca há muitos anos são ordens. Sobretudo quando se está prestes a navegar para alto-mar. Obedecemos, claro. Aos 31 anos, o pescador Mário, natural da Praia da Leirosa, tal como 16 dos 18 homens da companha da Gaivota do Mondego, já conta com um terço da vida passado só a bordo desta traineira e sabe bem do que fala.
Afinal de contas, também não havia muito a fazer por agora no convés. O mestre há muito que aproveitava para descansar nos minúsculos aposentos da popa e os homens, à medida que foram chegando à embarcação, cada qual com um pequeno balde branco vazio e um saco com o farnel, desceram também às camaratas, na proa, para umas horas de sono.
Apesar da nortada, que não se sentia tanto no porto de pesca da Figueira da Foz como ao largo, estava-se bem no convés, a apreciar os preparativos das tripulações de cada uma das oito embarcações que se aprestavam também para zarpar. “As noites de Lua cheia são boas para a sardinha”, soltou Diogo Borracho. Aos 26 anos, é o mais novo da Gaivota do Mondego. Coube-lhe em sorte o primeiro quarto de vigia e dar sinal ao mestre do momento em que a primeira das outras embarcações larga amarras. “A nortada também é boa porque afasta as águas mais quentes da superfície e traz à tona águas mais frias, com os nutrientes de que os cardumes precisam para se alimentarem. E é bom que as sardinhas se alimentem, porque têm andado sequinhas”, remata de pronto, com um sorriso e muita sabedoria, antes de, também ele, se retirar.
Nas camaratas da proa, iluminadas por uma luz ténue, os homens descansam e não há barulho, exceto o que vem do ressonar de alguns. Está calor, e a única cama que resta, uma das mais próximas da proa, é demasiado pequena para esticar as pernas. Mas vai ter de servir para passar pelas brasas e ajudar a acelerar o efeito do comprimido para o enjoo.
Só por volta das duas da madrugada é que os motores começam a trabalhar e a traineira se faz à vida. Na embarcação ninguém se mexe. Continuam todos tal como estavam, mais do que habituados àquela ligeira ondulação do rio e mesmo à entrada nas águas salgadas. O mar não está chão, mas nem por isso se mostra particularmente agitado. As ondas não têm mais de metro e meio. Nada de especial.
‘Uma vida linda’
Ainda não tinha passado uma hora desde que saíramos do porto, a pouco menos de três milhas marítimas da costa, quando a sirene tocou a avisar os homens que o sonar detetara um cardume. “Com sorte é sardinha”, ansiou João Neto, 41 anos, natural de Buarcos, há um quarto de século “na vida do mar”. Na ponte, o homem do leme também desconfia que seja. “Ainda que o sonar não nos permita identificar com exatidão a espécie encontrada”, explica. Hélio Paulino é o mestre. Ainda só tem 40 anos mas já anda “nisto” há mais de 20.
“O meu pai era mestre e eu fui pescador, contramestre e agora sou mestre há dez anos”, explica. Tem vários cursos de pesca de alto-mar e espera atingir ainda este ano o topo de carreira, com o curso de mestre do largo pescador.
Os primeiros homens a entrar ao serviço são os da chalandra, o pequeno bote de madeira que é retirado pela popa para as águas com a ajuda de um cabo. Ricardo Borges, 40 anos, é um dos que mais arriscam – quando o mar está bravo, o pequeno bote transforma-se numa minúscula casca de noz naquele oceano imenso. Mas Ricardo não se imagina a fazer outra coisa. “Isto é bonito, é uma vida linda, mas o mal que tem a vida na traineira é não ter ordenado”, dirá mais tarde, que isto agora não está para grandes conversas.
A pesca da sardinha é feita em cerco com uma rede de quase um quilómetro de extensão. Uma das extremidades fica na chalandra enquanto a traineira contorna o cardume e vai fechar esse círculo. “Agora é rezar para que seja mesmo sardinha e para que a rede não se rasgue”, diz o mestre apontando para um dos monitores que compõem o painel de instrumentos na ponte da traineira, e onde é visível uma mancha escura.
É mesmo sardinha e, se tudo correr bem, com apenas um lanço a Gaivota do Mondego atinge o limite permitido por cada faina, que é de 166 cabazes – 3652 quilos (cada cabaz equivale a cerca de 22 quilos). “Antigamente pescava-se mais quantidade. Com as quotas impostas pela UE, os preços subiram 4 a 5 vezes, mas preservaram-se mais as espécies. Eu sou favorável às quotas. O que não acho bem é que só nos deixem trabalhar sete meses por ano. Pelo menos nove meses devíamos poder fazê-lo”, justifica o mestre Hélio.
E carapau, haverá?
Por esta altura, a azáfama no convés é grande e não há ninguém parado. A maioria dos homens está encostada à amurada a ajudar na dura, morosa e delicada tarefa de ir fazendo subir a rede sem que ela sofra qualquer dano. Caso contrário, lá se vai todo o trabalho de uma noite por água abaixo. As luzes, que entretanto se acenderam por todo o barco, ajudam a dar um magnífico brilho prateado à infindável quantidade de sardinhas que salta desesperadamente, parecendo antever o que a espera. Ao mesmo tempo, já há homens a saltar para as dornas recheadas de gelo, quebrando-o com as galochas e passando os baldes a outros, para que possam ir armazenando o pescado e fazer com que se conserve assim até chegar à lota.
A operação é demorada mas bem-sucedida. “Se isto não fosse sardinha, ou se não tivéssemos atingido o limite, continuávamos a navegar para tentar encontrar outro cardume e repetir todo o processo as vezes que fosse necessário, até ao nascer do dia ou até não ser mais possível fazê-lo”, explica o mestre. Desta vez correu bem logo à primeira, e ainda antes das cinco da manhã o objetivo principal estava cumprido. “Agora vamos tentar ver se dá para encher o resto do barco com carapau. Ali, próximo de um velho navio afundado, costuma haver uns cardumes”, diz Licínio Manuel, 52 anos, o mais velho e experiente da companha. Está há 32 anos nesta traineira, depois de ter trabalhado alguns na Celbi, a empresa de celulose da Praia da Leirosa e cujas luzes das gigantes torres nunca perdemos de vista por um segundo em toda a faina da noite.
O carapau é que parece ter preferido outras águas e o sonar nem deu sinais. A Gaivota do Mondego começou então, lentamente, a navegar em direção à costa. “A lota só abre às sete da manhã. Não vale a pena chegar lá muito cedo para ficar à espera”, explica o mestre Hélio. Por esta altura, já os homens voltaram a recolher às camaratas e o convés está de novo vazio ao raiar do dia. É neste momento que se percebe melhor o nome de batismo da traineira. Até terra firme, a única companhia é um bando de gaivotas que sobrevoa a embarcação à cata das sardinhas que jazem mortas nas redes espalhadas pelo convés.
A lota continua
Uma noite no mar deu 60 euros a cada homem. Mas “estivemos meio ano parados, e no desemprego o que recebemos é menos que o ordenado mínimo”, lembra um pescador
Os breves momentos de descanso depois de recolhidas as redes e até o barco atracar são providenciais para a tripulação, que, mal põe os pés em terra, logo se encarrega de descarregar as dornas e de as transportar num empilhador em direção aos armazéns onde o peixe vai ser loteado. E aqui, dependendo do tamanho, da gordura, e de se saber se a pescaria correu bem noutras paragens (como Matosinhos, Peniche ou o Algarve), é que é ditado o preço e a jorna de cada pescador. “Não temos ordenado-base. Recebemos à percentagem do pescado, e esse valor varia consoante o escalão de cada homem da companha. Normalmente oscila entre 1,3 e 1,5 por cento”, explica o mestre Hélio Paulino.
A avaliar pela cara dos pescadores, o resultado de tanto trabalho não foi bom nem mau. A sardinha acabou por ser vendida a 26 euros o cabaz o que, multiplicado por 166, rendeu 4316 euros. A cada homem deu qualquer coisa à volta dos 60 euros e ainda um balde cheio de sardinhas para levar para casa. “Podia ser pior, mas podia ser muito melhor”, diz Mário Santos, num encolher de ombros. “É que não se esqueça que nós estivemos meio ano parados, e no desemprego o que recebemos é menos que o ordenado mínimo. Nalguns casos muito menos.”
“É também por isso”, intervém Ricardo Borges, o homem da chalandra, “que não está a entrar gente nova para esta vida. Isto é muito bonito, mas não compensa”.
Sardinha, o petróleo do mar?
Este ano, a quota portuguesa vai chegar às 19 mil toneladas. Mas alguns armadores pedem mais regulamentação
António Lé é uma das vozes que mais se têm batido pela regulamentação do setor da pesca. Com uma frota de seis embarcações, entre elas a Gaivota do Mondego, o armador é favorável também às quotas para proteção dos reprodutores e da época da desova. Para o empresário, “a sardinha é o petróleo das águas portuguesas e faz parte da identidade de um povo”, pelo que entende ser fundamental a regulação do setor. “Não queremos viver de subsídios. As pessoas querem viver do seu trabalho. Agora, o que pretendemos é condições de trabalho”, diz.
Muito crítico em relação ao anterior Governo, nomeadamente para com Assunção Cristas, que detinha a pasta do setor, o armador diz que a atual líder centrista “é uma pessoa extremamente educada, mas com um desconhecimento profundo do que é a pesca em Portugal”. António Lé vai mesmo mais longe, não tendo dúvidas de que, com as políticas implementadas pelo anterior Governo, a pesca tinha os dias contados: “Toda a gente defende a economia azul, a economia do mar, menos a ex-ministra que defendia o museu da economia do mar.”
Ainda sem uma opinião formada sobre o papel do atual Governo, o armador diz que já fez, pelo menos, alguns reajustes. A quota de 14 mil toneladas a que o País tem direito por deliberação comunitária vai chegar às 19 mil toneladas, com a caução do executivo. Mas há muito por fazer pela certificação da pesca e pela garantia de longevidade desta atividade.