Gritos, insultos, ameaças, choques. A invasão das estradas pelas bicicletas está a aumentar a tensão no asfalto, acentuando a velha rivalidade entre as quatro e as duas rodas. Desde que entrou em vigor a 13.ª alteração ao Código da Estrada, que reforça os direitos dos ciclistas, os problemas têm aumentado.
E se a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária diz que é ainda cedo para fazer um balanço das alterações introduzidas na revisão do Código da Estrada, os números na posse da PSP são elucidativos. Face ao período homólogo de 2013, nos primeiros cinco meses do ano os sinistros com bicicletas aumentaram 42%, de 272 para 386, com o registo de duas mortes. Com exceção para o número de vítimas mortais, que se manteve inalterado, os feridos têm crescido.
“Aqui ninguém é inocente”, avalia um técnico de uma instituição fiscalizadora. “Se é um facto que os automobilistas sentem que são o elo mais forte e abusam muitas vezes dessa posição, os ciclistas com frequência também descuram as regras básicas de segurança.”
Há cerca de um ano, o ourives Carlos Navarro, 48 anos e voluntário na Ciclo-Oficina dos Anjos, em Lisboa, viu-se todo negro no meio do chão e com a bicicleta destruída, em Campo de Ourique. Habituado às humilhações verbais dos condutores, com insultos e gritos a mandá-lo ir para casa ou sair da estrada, naquele dia as agressões subiram de tom. “Ia de bicicleta com uma amiga quando um carro se pôs atrás de nós a buzinar e a dizer-nos que não podíamos andar na estrada”, conta. “Quando parámos num cruzamento, aproximei-me do condutor e expliquei-lhe que é proibido andar no passeio.
Arrancámos e nessa altura o condutor meteu a marcha atrás e atropelou-me.” Carlos Navarro caiu e a bicicleta ficou feita em frangalhos. “A pessoa saiu do carro, ameaçou que me batia se a minha amiga não se calasse e foi-se embora.” O ourives foi socorrido pelo INEM e a PSP tomou conta da ocorrência. Depois, conseguiu que a seguradora do carro lhe pagasse o arranjo da bicicleta, e o condutor foi sancionado, por abandono da vítima, com uma coima de mil euros e seis meses sem conduzir. Carlos Navarro considerou a punição suficiente e não avançou com a queixa-crime.
Convivência, precisa-se
Jorge Jacob, presidente da Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária, alerta para que, a par do número de sinistros, o volume de bicicletas a circular nas vias públicas não cessa de crescer. E, embora ainda não haja dados definitivos, sabe-se que o verão representa um dos picos de maior utilização de bicicletas e, por isso, registam-se mais acidentes.
Jorge Jacob explica que os ciclistas têm agora mais direitos, como o de cedência de passagem na via, ao mesmo tempo que se perderam algumas obrigações, como a licença a comprovar conhecimentos básicos do Código da Estrada, ou a matrícula das bicicletas que facilitaria a obrigatoriedade da existência de seguro. Apesar das campanhas de sensibilização, ciclistas e automobilistas continuam a desconhecer regras elementares, um facto detetado pela PSP, que tem vindo a aumentar a fiscalização.
Do lado dos condutores, Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Club de Portugal, surge em público a exigir a obrigatoriedade de seguro para os ciclistas, tendo em conta que passaram a circular nas vias públicas lado a lado com os restantes veículos motorizados.
Da parte dos ciclistas, a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta mostra-se contra a eventual obrigação de utilização de capacete ou da existência de seguro. Argumenta que, por serem o elo mais fraco, os ciclistas não devem nunca arcar com as despesas resultantes de um acidente, mesmo que tenham a culpa. Os automobilistas que paguem. José Manuel Caetano, presidente da federação, diz até que, quanto mais bicicletas circularem nas cidades, mais devagar andam os carros.
Catarina Brito, 39 anos, consultora de comunicação, cruza-se todos os dias de manhã, em Lisboa, com um casal que deve levar esta missão a peito. “Da Avenida de Paris à Almirante Reis, apanho-os sempre à hora de ponta a pedalarem de mãos dadas “, conta. “Vão a uns dez quilómetros por hora, estrangulam o trânsito, mas não se importam nada com isso.” Também fã da bicicleta, Catarina Brito conduz o carro no dia-a-dia e diz que falta uma enorme dose de bom senso nos dois lados. “Muitas vezes os ciclistas nem têm noção das regras de trânsito”, diz. “Ainda na semana passada tive de travar a fundo para não bater num ciclista que entrou numa rotunda a acelerar e se atirou para a minha frente.” Esta guerra em surdina continuará até quando?
Novos direitos e deveres dos ciclistas
- Podem circular nas estradas, ciclovias e bermas, desde que, aqui, não perturbem os peões;
- A circulação nos passeios só é possível até aos 10 anos;
- Sempre que se apresentam pela direita, têm prioridade;
- Nas rotundas, podem ocupar a via de trânsito mais à direita, mesmo que não pretendam sair de imediato;
- Podem usar toda a faixa de rodagem dentro das localidades, incluindo manobras;
- Estão autorizados a circular aos pares, desde que não ponham em perigo o trânsito, quando o tráfego é intenso ou exista fraca visibilidade;
- É obrigatório andar com um documento de identificação. A multa varia entre €30 e €150;
- Aplicam-se as restrições de condução com álcool;
- O seguro não é obrigatório e o uso do capacete é apenas recomendado, exceto no caso das crianças transportadas em equipamentos específicos;
- A campainha é recomendada;
- Se for apanhado a guiar e a falar ao telemóvel, a coima varia entre €60 e €300;
- É obrigatório o uso de luzes e refletores desde o anoitecer e quando existem fracas condições de visibilidade. A multa varia entre €30 e €150;