Conheço o José Pedro Borges há vinte anos. A nossa ligação prende-se com outro mundo, o dos Ralis. Trabalhamos em conjunto na organização do Rali de Portugal mas sempre que estamos juntos, monopolizamos os temas de conversa e desviamos as atenções da audiência para os assuntos do Mar. Entre conversas de mergulhador, espécies e as suas características lá vamos trocando impressões para espanto dos que nos escutam, mais habituados a motores, potências e derrapagens controladas. O José Pedro já foi piloto de ralis, participa regularmente nestas campanhas, é também um renomado malacólogo e possui uma das maiores coleções de conchas do mundo. Este ano não pôde estar presente na campanha, seguiu rumo a um encontro mundial de malacologia que decorreu no norte da Europa, antes de partir, apresentou-me à estrutura de missão e aos responsáveis pelas campanhas M@rBis, entregando-me literalmente aos “bichos”.
Pouco tempo depois de ter iniciado a minha participação na campanha M@rBis rumo ao conhecimento da costa algarvia e à biodiversidade do mar que banha o Algarve, mudei radicalmente a minha atitude e forma de abordar o tema Mar.
Por mais que saibamos de forma empírica que o mar encerra infinitos tesouros de vida, ainda que reconheçamos que o nosso futuro passa por mergulharmos no conhecimento profundo do meio subaquático, ficaremos sempre maravilhados por tanta e tão diversa biodiversidade ainda que estejamos já, envolvidos com a ciência. Também aqui as cadeias, pirâmides ou correntes de vida começam muito antes de poderem ser observadas a olho nu.
No laboratório improvisado a bordo do Navio de Treino de Mar Creoula observamos, através das lupas binoculares as mais ínfimas formas de vida. Confesso que foi para mim a maior descoberta nesta campanha. Perceber que existem espécies microscópicas de vida é cognitivamente aceitável, agora ver com os meus próprios olhos que são tantas e tão diversas famílias de seres, só me eleva o respeito por este aquário gigante que é o nosso oceano.
Salvo honrosas exceções, que para mim, pela engenharia que empregam na sua propulsão os Nautilus são autênticos marinheiros da antiguidade. Confesso que não morro de amores por, perdoem-me os cientistas, caracóis, búzios, amêijoas e berbigões,. No fundo, todos os outros seres que vivem dentro de uma concha, sem grande coragem para enfrentar o mundo cá fora e que se refugiam ainda antes do perigo espreitar. A minha consideração estava prestes a mudar, assim que espreitei pela lupa e pude contemplar algo que me parecia apenas um grão de areia mas que no fundo era um pequeno gastrópode que num gesto lânguido saiu parcialmente da sua “casa” contorcendo-se até se virar para uma posição mais confortável e segura.
Mónica Albuquerque é licenciada em biologia, dentro do estudo da biodiversidade marinha a sua especialização incide no estudo dos moluscos marinhos do mar de Portugal, participando em campanhas anuais desde 2006. Trabalha na EMEPC e assume todo o trabalho de coordenação logística e avaliação dos projetos dos participantes nesta missão. Pelo seu papel ativo de maestrina nesta “orquestra do mar” passámos a tratá-la como: Almirante Albuquerque. Por entre teses de licenciatura, estudos e publicação de livros, conquistou um conhecimento profundo em particular, sobre os moluscos marinhos das Ilhas Selvagens e dos montes submarinos Gorringe: a meio caminho entre Cabo de São Vicente e Madeira. Ponto onde teve origem o sismo de 1755.
“Todos os anos nas várias campanhas realizadas e sempre que possível colaboro identificando a bordo as espécies coletadas, em conjunto com o José Pedro Borges, que este ano não pode participar. Quando não é possível, a bordo, porque a triagem tem de ser minuciosa essa separação e identificação é realizada nos laboratórios da EMEPC durante o resto do ano. Temos ainda uma rede de investigadores com os quais colaboramos, para os moluscos não é excepção. Estou neste momento a colaborar numa publicação com a descrição de novas espécies para a ciência. Novos moluscos marinhos recolhidos em 2010 nas Ilhas Selvagens durante uma campanha M@rBis. Pertenço à direção do Instituto Português de Malacologia que se dedica ao estudo dos moluscos. Em relação ao Algarve posso adiantar que a zona da ria Formosa é muito rica. Mas em toda a costa algarvia existem praias mais protegidas com afloramentos rochosos e que por isso concentram muita vida.”
Mónica estava com os olhos colados à lupa há já vinte minutos a observar uma amostra de…areia!. Ao mesmo tempo ia separando com precisão e destreza, com a ajuda de uma pinça, vários grãos de cores diferentes. Confesso que estranhei o facto, pensei nesse momentos que também a ciência teria razões que a própria razão desconhece. Senti-me tentado a interrompê-la a fim de desvendar o mistério. Quase que me ordenou que olhasse através da lupa para acreditar pelos meus próprios olhos que não eram grãos mas sim várias espécies de minúsculos, para mim, búzios e caracóis de várias cores e formas, todos eles estavam vivos e movimentavam-se vagarosamente. Mais uma descoberta para o meu universo de ciência, a areia da praia esconde vida, muita vida!
“Não nos apercebemos facilmente mas a verdade é que ela está lá. Basta que se faça uma recolha na zona de areia à beira mar e facilmente encontramos pequenos búzios (moluscos) ou pequenos vermes (poliquetas). Na zona seca da areia, se procurarmos bem ainda encontramos pequenas conchas vazias de pequenos búzios. Nas zonas rochosas junto à beira mar podemos também encontrar centenas de pequenos moluscos em tufos de algas nas poças de maré. Alguns destes pequenos moluscos têm apenas 2 a 3 milímetros mas isso só faz com que seja ainda mais entusiasmante procurá-los! É como procurar uma agulha num palheiro. No meu caso, já tenho a vista treinada pelo que, quando recolhemos durante o mergulho algum tufo de algas já sei que se o agitarmos bem dentro de um tabuleiro com água salgada eles vão soltar-se e povoar o nosso tabuleiro com as suas pequenas e coloridas conchas.
As espécies mais frequentes de encontrar misturadas entre os grãos de areia da praia são as espécies dos géneros Bittium, Chauvetia ou Nassarius. Já à beira mar temos centenas de espécies diferentes, principalmente de Bivalves. As cores das conchas são todas em tons de castanho. Espécies do género Bittium e Chauvetia são muito parecidas, geralmente não tendo um tamanho superior a 1 cm. Se as observarmos com uma pequena lupa vemos a sua superfície esculpida, com pequenas costelas, pontos e linhas, como se de uma escultura se tratasse. A concha é produzida pelo molusco que se encontra no seu interior. Dentro do mesmo género, existem espécies cujas conchas são praticamente iguais, só sendo possível a sua distinção, observando o animal ainda vivo no interior da concha. Essa é a razão pela qual os observamos à lupa durante as nossas expedições.
As espécies do género Nassarius são várias e podem atingir uma dimensão maior. São em conchas deste género que é frequente vermos crustáceos alojados. São os ermitas, ou casa-alugada. São artrópodes que vão acomodando o seu corpo geralmente no interior de conchas de moluscos desocupadas. Conforme vão crescendo vão procurando “casas” maiores e assim vão mudando de concha em concha. As espécies do género Nassarius são de tonalidades amarelo, castanho, branco.” Esclarece-me de forma convincente a nossa Almirante Albuquerque.
Seria interessante para os pais que passam várias horas na praia em brincadeiras com os filhos junto à água se criassem desafios sobre este tema. Sobretudo quando as bolas e as raquetes ou os baldes e as pás já não cativam os mais pequenos, Mas como poderíamos triar a biodiversidade existente numa amostra de areia ou que jogos poderemos criar com as crianças para as entusiasmar no conhecimento da biodiversidade marinha? Ninguém melhor do que a bióloga Mónica Albuquerque para nos ajudar:
“existe muita vida entre os grãos de areia. É o que os biólogos chamam a “Meiofauna”. Fazer uma amostragem para separar estes organismos não é muito difícil. Basta recolher areia dentro de água (por exemplo empurrando um balde de praia contra o sedimento), e ter à mão um pacote de açúcar e um passador! Depois de termos recolhido ½ balde de sedimento juntamos água do mar à qual juntamos açúcar. Depois de remexer a areia dentro do balde com a água e açúcar, a diferença de densidades faz com que os pequenos organismos se soltem e venham ao de cima. Depois é só recolhê-los com um passador e podem observar-se as suas características distintivas com uma pequena lupa.
Pais e filhos podem fazer vários jogos didáticos relacionados com o conhecimento marinho. Com a ajuda de um guia de campo é fácil interessar os mais novos e fornecer-lhes pistas para um respeito maior sobre o mar: Recolher as conchas que encontrarmos à beira mar ou na areia e tentar identificar as espécies usando um guia. Observar as algas à beira mar, elas não fazem mal! Tentar identificar as espécies. Procurar animais vivos que estejam fora de água e devolvê-los ao mar! Ou então usar máscara de mergulho e procurar peixes sobretudo aqueles que vivem na areia!
Existem ainda outras actividades: A EMEPC e a Science4You editaram no ano passado um Quiz do Mar (nível I e II) e que melhor sitio para ficar a conhecer o nosso mar do que a praia! Depois destas descobertas, os mais pequenos questionar-se-ão se poderão continuar a pisar a areia. Na areia seca os organismos já estão mortos e a areia molhada quando a pisamos esta molda-se ao nosso pé, como tal não lhes causamos quaisquer danos, ainda que nos sintamos Gulliver em terra de Liliputs”.
Mil e um poemas e alusões invocam a areia da praia. Ciência e poesia podem e devem cruzar-se, fundindo os seus mundos. Se na canção: …o mar bate na areia e desmaia porque se sente feliz, é porque é certamente uma verdade inquestionável que vive sobre os nossos pés, basta querer vê-la!
Links:
- http://www.campanhasmarbis.org/
- http://www.emepc.pt/
- http://www.facebook.com/EMEPC
- http://www.ipmalac.org/
- http://www.science4you.pt/quiz/quiz4you-do-mar-nivel-1-161-detail