Se há um humor indiscutivelmente britânico, Saki, será, na literatura, um dos seus expoentes máximos. Hector Hugh Monroe (1870-1916), que assinava os seus pequenos contos como Saki, consegue manter o leitor, história após história, numa expectativa constante sobre qual será, desta vez, o ângulo humorístico que nos vai desconcertar e conquistar. As suas descrições da vida aristocrática inglesa do final do séc. XIX, eram ora sarcásticas, ora mordazes, ora apenas divertidas, mas sempre com um subtil toque de humor negro que nunca nos deixa indiferente. É uma delícia ler um qualquer livro de contos de Saki, e não só porque nos rimos, mas porque nos limpa a alma. O humor tem esta particularidade de conseguir expor as contradições da condição humana de forma tão elegante que quase não damos por elas. Saki, que morreu na 1ª Grande Guerra, era um mestre nisso.
O humor é parte integrante do que é ser humano e por isso é de estranhar que não desempenhe um lugar mais importante na História, na ciência, no ambiente. Sabermos rir de nós próprios é meio caminho andado, qualquer que seja o lado para onde vamos. A ciência, que gosta tanto de se levar a sério, tem de vez em quando que se rir dela própria para conseguir prosseguir o seu caminho com mais humanismo. Em Portugal, há um grupo de cientistas que faz stand-up comedy sobre ciência: os cientistas-de-pé. O seu último espetáculo, intitulado “salvar o mundo ou rir a tentar” aborda a comicidade de uma série de temas ambientais, passando dessa forma, mensagens que podem eventualmente sensibilizar audiências improváveis em temas como o consumo sustentável, a pegada ecológica, a biodiversidade, os incêndios, a reciclagem, ou o decrescimento económico.
Mas além desta potencial comicidade na forma de tratar os temas ambientais, Szerszynki (2007) refere a ironia como uma contribuição relevante para a resolução da crise ambiental. A nossa análise do mundo tende, demasiadas vezes, a dicotomizá-lo de forma redutora. Em ambiente, infelizmente é muito comum haver antropocêntricos vs não-antropocêntricos, ou falar de factos vs valores, ou objetividade vs subjetividade, humano vs natureza, razão vs emoção, e infelizmente a lista poderia continuar. As dicotomias promovem a oposição dos seus elementos e portanto a exclusão, mas acima de tudo cortam o possível diálogo. É urgente desconstruir estas dicotomias e desfocar hierarquias de forma a promover uma compreensão de como os elementos deste binário afinal são partes de um todo internamente relacionado. Abrir a possibilidade de diálogo e a possibilidade da convivência na diferença é fundamental se queremos resolver os problemas ambientais que temos pela frente. O humor aparece como uma peça fundamental neste processo, exatamente para ajudar a desconstruir essas certezas que dominam a nossa visão do mundo. O humor usa o irracional, o paradoxal, o ilógico, o incoerente, o desapropriado ou mesmo o falacioso de forma brilhante e esses são também os adjetivos que nos podem ajudar a abrir caminhos de diálogo, caminhos de coprodução de significados, caminhos que nos podem levar a um qualquer lado.
Diz Szerszynki que só adotando uma atitude de ironia filosófica, se consegue reconhecer a impossibilidade do sujeito escapar às contradições de uma existência finita e dessa forma vislumbrar uma resposta mais autêntica do nosso destino. É na ironia que se consegue uma diferente fundamentação filosófica para o ambientalismo, um que reconheça a contingência da nossa existência e os limites do conhecimento humano, e evite o excesso de confiança e a falta de reflexividade inerentes às duas tradicionais estratégias epistemológicas ambientais: o modernismo técnico-científico e o romantismo. A primeira é uma meta-narrativa herdeira do renascimento que pensa a crise ambiental acima de tudo como um défice de racionalidade, de conhecimento, de tecnologia. A segunda, assente numa certa rejeição da razão, defende um retorno à natureza e à tradição, inspirada na reação romântica à industrialização do século XIX.
Diz Szerszynki que a persistência da insustentabilidade é devida, não apenas à ignorância dos indivíduos, ou à lógica do capitalismo, mas também a uma crise de identidade e significação política. A ironia consegue situar-nos num patamar que contribui para nos compreendermos melhor, um patamar onde mais do que enfatizar o poder da razão, conseguimos enfatizar os seus limites. A ironia não se ocupa apenas do observado mas consegue envolver o observador que passa assim a fazer parte integrante do problema e consequentemente da solução. Um ambientalismo irónico deve envolver uma consciência reflexiva da limitada e provisional natureza da compreensão humana, sem cair no cinismo ou num quietismo, mas antes pelo contrário promovendo uma compreensão mais alargada da complexidade da crise ambiental.
Conseguir um distanciamento da nossa compreensão do mundo e depois voltar com um novo sentido, com uma nova reflexividade relativamente à responsabilidade das nossas reivindicações proposicionais e normativas não destrói essa compreensão. Pelo contrário, é através desta negação irónica dos vários significados que a nossa linguagem comum se enriquece e se pode tornar anfitriã duma verdadeira responsabilidade ética.
Um casal de certa idade, cuja mulher era uma tagarela incansável, estava certa noite na sua sala conversando, ou digamos antes, monologando. Após umas horas, a mulher, achando que o seu marido estava a exagerar no silêncio, reparou que ele afinal estava morto, talvez desde o início da noite. É assim que Saki nos relembra que não podemos ficar a falar sem interlocutores, e que no ambiente não podemos só falar entre nós e para nós. Temos que abrir a janela, outro conto de Saki com uma personagem demasiado imaginativa…
Szerszynki, B. 2007. The post-ecologist Condition: Irony as Sympton and Cure. Environmental Politics, Vol,16, Nº2, pp 337-355.