Presumo que o título acima apresentado de uma espécie de que poucos ouviram falar e que nem sequer tem um nome comum seja relativamente dissuasor à leitura. Não é de estranhar: este molusco com cerca de 2.5 centímetros só sobrevive graças à sua capacidade de dissuadir outros animais de o comerem devido às suas defesas químicas, portanto, pode dizer-se que essa característica lhe está literalmente à flor da pele (e noutras partes do corpo). E é também por esse motivo que tem atraído a atenção dos investigadores: esses compostos químicos podem vir a dar origem a produtos farmacêuticos no futuro.
Uma vez que existem vários grupos de lesmas-do-mar (Tambja ceutae) que mantêm uma concha reduzida, supõe-se que esta estratégia de se tornarem pouco apetecíveis terá começado antes da regressão desta estrutura. E tal como alguns portugueses descobriram recentemente da pior maneira, houve vantagens em perderem as suas casas como, por exemplo, a eliminação do custo energético necessário ao desenvolvimento da concha ou a maior mobilidade. A desvantagem da vulnerabilidade à predação que foi compensada pela defesa química parece ter sido bem sucedida, uma vez que se conhecem poucos predadores destes animais. Por outras palavras, aos olhos dos predadores, a sua mistura de tons verdes, amarelos e azuis desiludem tanto como alguém da classe média a consultar os preços praticados num restaurante de luxo.
A investigação sobre lesmas-do-mar tem revelado algumas surpresas. Há espécies adeptas da energia solar que roubam cloroplastos (ou seja, estruturas celulares onde ocorre a fotossíntese) às algas de que se alimentam, para passarem elas a fazer fotossíntese, enquanto que há outras que têm compostos químicos com elevado potencial terapêutico. Por exemplo, um dos mais poderosos produtos anti-cancerígenos conhecidos (“dolastatina 10”) foi isolado de uma lesma-do-mar que vive no Índico e Pacífico, e encontra-se em fase de ensaios clínicos. Este processo de testes, que pode demorar mais tempo do que a resolução de casos na Justiça portuguesa, está geralmente dependente do finaciamento da investigação por empresas da indústria farmacêutica. Foi o que se passou com um analgésico para doentes com cancro e sida. Obtido a partir do veneno de um caracol marinho, que o usa para caçar pequenos peixes nos recifes de coral do Oceano Pacífico, este novo analgésico muito mais potente que a morfina demorou décadas a ser desenvolvido e aprovado para uso médico.
Em relação à Tambja ceutae, foi descoberta (como o nome indica) em Ceuta apenas em 1988, e a sua distribuição inclui o Estreito de Gibraltar, Canárias, Cabo Verde, Madeira e Açores. Apesar de ser geralmente pouco frequente, uma expedição realizada em Agosto de 2007 que integrou um biólogo português permitiu localizar centenas de exemplares num local aparentemente improvável: o porto da Horta, nos Açores. Ao contrário de velejadores de todo o mundo, que atracam aqui para conhecerem o famoso Peter Café Sport, o que atrai a lesma-do-mar a este porto é a grande abundância do seu alimento preferido, um pequeno animal filtrador parecido com um musgo designado por Bugula dentata (também não tem nome comum, coitado). Assim, foi possível recolher exemplares suficientes da lesma-do-mar para fazer análises químicas e os resultados não desiludiram. Mais uma vez, foi descoberta uma molécula nova com potencial terapêutico, baptizada de Tamjamina K por ser a 11ª molécula descoberta neste grupo, e que também se descobriu estar presente em pequenas concentrações na Bugula dentata. Aliás, é provável que esta molécula seja adquirida pela Tambja ceutae através da alimentação, sendo gradualmente acumulada para servir de defesa química. Isto é semelhante àquele esquema do desfalque de alguns cêntimos em milhares de contas bancárias, que não faz diferença a ninguém mas que acumulados dão um balúrdio de dinheiro.
Portanto, aquilo que pareciam ser apenas indolentes moluscos que vagueavam pelo porto da Horta, podem vir a dar-nos a receita para um novo produto farmacêutico no combate ao cancro. E apesar desta ser apenas uma possibilidade que só se concretizará com a ajuda de empresas farmacêuticas, anos de investigação fundamental e testes médicos com resultados positivos, é bom saber que a Natureza nos reserva ainda muitas surpresas, algumas delas mesmo debaixo do nosso nariz.
Referências bibliográficas:
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