A Greenpeace está habituada a ser o David na luta contra os Golias – as grandes corporações e os governos. Desta vez, a organização veste a pele de Golias contra Ia Anstoot, uma jovem sueca de 18 anos que decidiu avançar com um processo contra a mais conhecida associação ambientalista do mundo.
A iniciativa, apoiada pela RePlanet, uma organização não governamental que defende soluções científicas para os problemas ambientais, vem na sequência de um processo que a Greenpeace interpôs contra a Comissão Europeia no Tribunal de Justiça da União Europeia, devido à decisão de incluir a energia nuclear na Taxonomia Verde (permitindo que beneficie de apoios dados à energias sustentáveis).
Ia Anstoot, que integrou durante três anos o movimento de greve climática “Sextas-feiras pelo Futuro”, liderado pela sua compatriota Greta Thunberg, considera que a investida contra a energia nuclear é anacrónica e anticientífica, e que prejudica a ação climática ao provocar um aumento da queima de combustíveis fósseis, quando as suas campanhas resultam no encerramento de centrais nucleares (como aconteceu na Alemanha, que aumentou as suas emissões ao substituir energia nuclear por centrais a carvão).
A adolescente decidiu, por isso, e juntamente com ativistas climáticos de outros cinco países da União Europeia, lançar a campanha “Dear Greenpeace” (“Cara Greenpeace”), tendo entregado esta semana no Tribunal de Justiça da UE os documentos necessários para se tornar uma “parte interessada” na batalha legal que opõe a Greenpeace à Comissão Europeia. Se o tribunal aceitar, a jovem e outros ativistas vão depor contra a organização, defendendo o papel da energia nuclear como imprescindível para produzir energia limpa e assim combater as alterações climáticas. “A Greenpeace, devido aos seus dogmas contra o nuclear, acaba inadvertidamente por prejudicar o movimento climático”, diz Ia. “É por isso que apelamos à Greenpeace que abandone a sua oposição à energia nuclear.”
Não será uma batalha com as mesmas armas: a Greenpeace Internacional tem um orçamento anual de €92 milhões; a campanha “Dear Greenpeace” tem um orçamento de €30 mil.
Qual é o papel da energia nuclear no combate à crise climática?
Sendo esta crise tão grande, precisamos de todas as fontes de energia que temos. Tudo o que é livre de combustíveis fósseis: eólico, solar, nuclear, hidroelétrico, tudo. A energia nuclear é uma ferramenta muito importante nesse caminho. É uma ferramenta que está à nossa disposição e devemos usá-la.
As pessoas que são contra o nuclear dizem que os resíduos e o perigo de acidente são razões suficientes para evitarmos esta fonte de energia. O que lhes responde?
No que diz respeito aos resíduos, vale a pena lembrar que temos soluções de gestão de resíduos muito boas para a energia nuclear. A Finlândia, por exemplo, está a construir um armazenamento de longo prazo. A França dispõe de instalações de reciclagem de resíduos nucleares. Existem opções. Além disso, é uma preocupação com a qual definitivamente podemos lidar mais tarde. A crise climática tem de ser enfrentada agora. Se a minha geração tiver um planeta, podemos tratar dos resíduos nucleares mais tarde.
E quanto ao risco de acidentes, como Chernobyl e Fukushima?
Os acidentes são horríveis, mas temos de levar em conta que 7 milhões de pessoas por ano já morrem todos os anos devido à poluição do ar interior, devido à queima [de gás e madeira] nas suas casas. E a ONU prevê que centenas de milhões morrerão devido ao clima extremo nos próximos anos. Estamos a falar de escalas tão maciças de acidentes na crise climática… As centrais nucleares têm absolutamente de ser o mais seguras possível, mas, quando a alternativa é o efeito de estufa incontrolável, temos de reconsiderar as nossas opções.
A Greenpeace está a prejudicar a causa climática ao opor-se ao nuclear?
Sim. A sua oposição à energia nuclear na Alemanha, por exemplo, causou a abertura de várias centrais elétricas a carvão. É definitivamente um problema desligar a energia nuclear, porque muito provavelmente esta será substituída por combustíveis fósseis. É importante manter na rede toda a energia nuclear que temos para nos livrarmos dos combustíveis fósseis. Isso é o principal neste momento.
A Greenpeace cita o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas [IPCC] e os cientistas climáticos em geral para apoiar a necessidade de ação. Mas quando o IPCC e esses mesmos cientistas dizem que a energia nuclear é parte da solução, desconsideram-na. Não é este o tipo de escolha seletiva que normalmente vemos entre os negacionistas do clima?
Com certeza que é, e é trágico que a Greenpeace sinta a necessidade de se envolver nisto. Eu gostaria que trabalhássemos juntos, do mesmo lado, para travar a batalha real. Fala-se muito em ouvir os cientistas, mas o que temos de fazer é realmente ouvir os cientistas.
Muitas vezes ouvimos ambientalistas a pedirem às pessoas que ouçam a ciência. Mas parece haver uma linha vermelha quando a ciência vai contra alguns dogmas ambientais, como o nuclear e a engenharia genética. No caso da Greenpeace, isso tem que ver com a sua identidade, por ter nascido como um grupo antinuclear?
Sim, definitivamente. As gerações mais velhas foram criadas no movimento antinuclear. A minha mãe, por exemplo: as suas primeiras lembranças do movimento ambientalista são as marchas nucleares. É uma parte fundamental da identidade de muitas pessoas mais velhas e funciona contra o clima. Mas não se pode realmente salvar o planeta com base no que sentimos.
Estarão as empresas de combustíveis fósseis secretamente satisfeitas com a posição antinuclear de alguns grupos ambientalistas? Olham para a Greenpeace como os idiotas úteis?
Isso terá que perguntar às empresas de combustíveis fósseis. Não faço a menor ideia.
Mas na Alemanha, por exemplo, o facto é que o consumo de carvão aumentou devido ao encerramento das centrais nucleares. Portanto, de certa forma, o Greenpeace realmente acabou por ajudar a indústria de combustíveis fósseis…
Sim, isso é tristemente verdade. A Greenpeace, devido aos seus dogmas contra o nuclear, acaba inadvertidamente por prejudicar o movimento climático. É por isso que apelamos à Greenpeace que abandone a sua oposição à energia nuclear.
Disse que a geração anterior era praticamente contra a energia nuclear. A sua geração é diferente? Aceita melhor a ciência?
Em parte, a minha geração aceita melhor a ciência, sim. Penso também que estamos mais conscientes e mais desesperados em relação à crise climática, e por isso estamos mais dispostos a agir de forma pragmática. Houve um relatório intitulado “O mundo quer uma nova energia nuclear”, sobre o que as pessoas pensam sobre isto, e descobriu-se que a grande maioria dos jovens é a favor da expansão da energia nuclear. É muito importante sublinhar isto, porque somos nós que vamos viver e lidar com a crise climática.
O movimento ambientalista sempre foi muito emotivo. A razão está a começar a suplantar a emoção?
Precisamos de um equilíbrio. Não podemos ter apenas a razão e não podemos ter apenas a emoção. Precisamos de ter emoção para mudarmos por bons motivos. Queremos resolver a crise climática, não pelo bem do planeta, mas pelo bem da humanidade. É muito importante ter isso em mente. Existem soluções que não precisamos de adotar por vários motivos. Mas, ao mesmo tempo, também temos de levar muito em consideração a razão, porque há questões técnicas e científicas. Daí que seja necessário ouvir a ciência para descobrir as melhores soluções dentro dos limites dos nossos desejos e necessidades emocionais.
Como se sente por enfrentar um gigante como a Greenpeace? E que hipóteses tem de vencer?
É um desafio. A Greenpeace é enorme. Eles têm muito apoio. O que gostaria é que estivessem do meu lado. Quero voltar a combater os combustíveis fósseis. Isto é apenas uma coisa que tenho de fazer para salvar a energia limpa na União Europeia. É um pouco triste, mas estou feliz com a atenção que a minha campanha está a receber. E sinto que podemos mostrar a realidade à Greenpeace e esperar que eles mudem de ideias. Quer dizer, a Greenpeace Finlândia já o fez, eles já são pró-nuclear. Acho que há essa possibilidade. Quanto mais pessoas assinarem a petição e souberem dela, maiores serão as nossas hipóteses. Queremos mostrar à Greenpeace que eles vivem no passado e que o novo movimento climático é pró-nuclear.
Greta Thunberg é uma voz amplamente ouvida. Ela fez um comentário a apoiar a energia nuclear na Alemanha, pelo menos quando a alternativa é o carvão, mas não é um assunto sobre o qual ela fale muito. Greta apoia a expansão da energia nuclear? E seria uma ajuda se ela falasse mais sobre esta questão?
Não sei se apoia a expansão da energia nuclear, mas li o post dela sobre manter as centrais nucleares atuais, e isso já é extremamente importante. Estamos a falar de mais de um terço da energia limpa na União Europeia. Já é um começo. Tem de lhe perguntar a ela se é a favor da expansão, mas, se for, acho que ela deveria ser mais aberta sobre isso, porque é uma parte muito importante do debate climático.