PASSEANDO PELA MARGINAL, sentindo a brisa do Mediterrâneo, vendo os jogos amorosos dos casais de namorados, o homem de negócios cumprindo o seu jogging ao final da tarde, o vendedor de chá ambulante contando piadas a uma criança, ninguém diria que Beirute acabou de sair de uma guerra.
Olhando com mais atenção, descobrem-se as feridas. Há um desconforto no ar, mesmo agora, que o cessar-fogo foi declarado, pois ninguém acredita, verdadeiramente, que a paz chegou para ficar. Há as esplanadas quase vazias quando, dois meses atrás, era impossível conseguir um lugar sentado. Há a marina, deserta de barcos, agora que todos os iates dos milionários sauditas zarparam para outros destinos turísticos. Há a macabra exposição de fotografias, na Place de L’Etoile, no coração do centro histórico, revelando os momentos de agonia das vítimas do bombardeamento de Canaã, a 31 de Julho. Há tanques e tropas por toda a cidade, com o dedo no gatilho. E há as olheiras nos rostos de todos: pelas muitas noites em branco ouvindo os caças israelitas a largar bombas nos subúrbios pobres, de maioria árabe, terreno fértil para a mensagem do Hezbollah.
Israel queria silenciar o movimento xiita a guerra teve o efeito contrário. Nunca o «partido de Deus» contou com tanto apoio popular.
COSMOPOLITA E ECUMÉNICA
A capital libanesa, arrasada na guerra civil de 1975-1990, que causou mais de 100 mil mortes, havia conseguido reerguer-se dos escombros e reconquistar o estatuto de capital mais cosmopolita do Médio Oriente, graças ao trabalho do primeiro-ministro Rafic Hariri, que criou a companhia estatal Solidere para se encarregar das obras no centro histórico, preservando ruínas romanas, recuperando edifícios centenários e integrando esplanadas nas praças da cidade. Beirute ainda chora a sua morte a 14 de Fevereiro de 2005, foi alvo de um brutal atentado bombista, que destruiu um quarteirão inteiro, na chique avenida marginal. Os turistas estavam de novo rendidos aos encantos desta cidade odalisca, mistura de tantos povos e religiões: no novíssimo Aeroporto Internacional previa-se para este ano um movimento de 6 milhões de passageiros.
Como todas as coisas belas, Beirute foi sempre muito disputada. Destruída por Alexandre, o Grande, foi redesenhada pelos romanos, caiu em mãos árabes, em 635, sendo depois reconquistada, nas Cruzadas, e, mais tarde, tomada pelos otomanos. Em 1888, foi declarada província da Síria e, em 1920, tornou-se francesa. Só após a II Guerra Mundial, o Líbano ganhou a independência mas os conflitos entre os seus diversos grupos religiosos mergulharam a capital na guerra civil. As potências regionais vizinhas foram arrastadas para a guerra: Palestina, Síria e Israel quiseram ajustar, também ali, algumas contas.
Desses anos negros nasceu uma Constituição que assegura a representação política de todos os credos: o Presidente é cristão, o primeiro-ministro deve ser escolhido entre os sunitas e o presidente do Parlamento entre os xiitas. Os lugares dos deputados são repartidos por todos, dividindo-se entre muçulmanos (sunitas e xiitas) e cristãos (maronitas, católicos romanos, arménios e gregos, ortodoxos arménios e gregos, metodistas, coptas e protestantes). Existem ainda lugares para minorias como os esotéricos drusos, que acreditam na reencarnação e na superioridade intelectual da mulher apesar de os seus oito deputados serem homens.
A CIDADE DIVIDIDA
Na sequência da guerra fratricida dos anos 80, Beirute foi dividida em duas: a parte Leste e a parte Oeste, com cristãos de um lado e muçulmanos do outro. Essa linha virtual, embora se tenha diluído na última década, permanece na memória de todos. E voltou a ser respeitada, durante estes 34 dias do conflito entre Israel e o Hez-bollah, como regra de sobrevivência para a população, que cedo percebeu que num lado caíam bombas, no outro não.
«Esta guerra foi a mais difícil de suportar », desabafa Philipe Arbadji, 34 anos, cristão libanês, casado com a portuguesa Caroline, 33, evacuada para Portugal pela Força Aérea, no calor do conflito, com os filhos de ambos, Lea, de 5 anos, e Pierre, de 2 anos. «Esta guerra» é uma das expressões recorrentes na conversa com muitos libaneses.
Quando se cresce ao som dos tiros e das bombas, é preciso situar o conflito.
Philipe quis que a mulher e os filhos viajassem para um país seguro, mas ele optou por ficar no Líbano a fim de prestar assistência à mãe. Achava que iria «resistir de outra forma, psicologicamente». A sua estratégia passou por trocar o apartamento de família, no centro de Beirute, por uma casa de montanha, em Fariya, 40 km a norte da capital. Todas as manhãs regressava à cidade, para trabalhar: não faltou um único dia. «Acabamos por criar rotinas e habituamo-nos. À partida, a nossa zona não seria um alvo para os israelitas, que se concentraram no bairro de Dahiyeh, onde achavam que se escondia Nasrallah [líder do Hezbollah]. Era impossível dormir, com o barulho dos aviões e das bombas, durante toda a noite. Tive que me ir embora.» Philipe explica que «quando era mais novo, via a guerra de forma muito diferente ». Toda a sua adolescência foi marcada pelos sons dos tiroteios na cidade. Não tinha a verdadeira noção, como agora, dos perigos que corria naquele conflito. Menos ainda nos anos 70, quando a inocência de criança o levava a acreditar que tudo não era senão um jogo. «Passava horas a jogar às cartas, nos abrigos, e depois saíamos em grupo, com os professores, para brincar às escondidas, a caminho da escola. Hoje, sei que era a forma de nos fazerem esconder, ora numa esquina, ora atrás de árvores, para escapar aos snipers.»
NASCER AO SOM DAS BOMBAS
Em 1982, quando o exército israelita, liderado por Ariel Sharon, destruiu meia Beirute em busca de Yasser Arafat, que ali dirigia o quartel-general da Organização de Libertação da Palestina, tinha acabado de nascer Ahmad Messelmani, que hoje vive na fronteira do bairro de Dahiyeh o mais afectado de Beirute, onde 90% das casas ficaram destruídas.
O seu prédio escapou às bombas. O jovem bancário sabe que foi apenas por acaso. Mais de uma dezena de familiares seus morreram no último mês. O corpo de um primo ainda permanece debaixo dos escombros. Morreu já depois do acordo de cessar-fogo ter sido assinado, quando foi ver se a sua casa estava a salvo, na noite de domingo para segunda-feira, 14 de Agosto.
Ahmad juntou-se aos grupos de homens que estão a limpar o bairro e a preparar o regresso dos refugiados às casas que ainda se aguentam de pé. O facto dos trabalhos serem organizados pelo Hezbollah não o incomoda. Talvez pensasse de maneira diferente antes «desta» guerra, ele que nunca tinha sentido os efeitos do ódio à solta. A partir do dia em que a casa onde se encontrava tremeu sob as ondas de expansão de uma bomba que caiu a poucos metros, toda a sua visão do mundo mudou.
«Estava em casa do meu irmão e a minha cunhada cozinhava para nós, quando tudo começou. Entrámos em pânico, fui buscar a minha mãe e fugimos com a roupa que tínhamos no corpo, todos no meu carro, que é velho e muito pequenino. », recorda, enquanto o seu olhar viaja no tempo e se enche de dor. Foram para as montanhas, onde dormiam amontoados numa casa de duas divisões. «Todos os dias passava mais de uma hora à procura de água. E faltava-nos tudo, até o pão.» Mas o pior, considera, foi a falta de assistência médica: «Vi uma diabética morrer por não haver insulina.» O amigo Hassane Ali Khein Eddine, 25 anos, também temeu pela vida da sua irmã, que teve uma filha ao oitavo dia de guerra. O parto foi de cesariana e o internamento recomendado era de dois a três dias. Mas a «alta» chegou poucas horas depois do nascimento de Jebel, quando o hospital começou a ser bombardeado. «Foi incrível, a força das bombas é tão grande que sentimos a pressão nas nossas entranhas.
Parece que voamos. nem sei como estamos vivos.»
VITÓRIA DIVINA?
Nas ruas de Dahiyeh cheira a corpos putrefactos, a urina e a lixo. O calor, que começa a apertar logo às primeiras horas da manhã, não ajuda. Mas há mais de 6 mil voluntários (recrutados pelo Hezbollah) a revolver os escombros em busca de cadáveres, a ajudar famílias a recuperar haveres ou a limpar os caminhos e as divisões das casas que se mantêm de pé.
A entrada no bairro não é fácil. É preciso parar num check-point controlado por membros do Hezbollah, que destravam as armas em sinal ameaçador perante a aproximação de estranhos. Perguntam pelo passe de residente (criado nos últimos dias) ou pela autorização das cúpulas do «partido de Deus». Poucos metros depois, avista–se a tenda que serve de sede improvisada ao movimento xiita e onde se coordenam todos os trabalhos de limpeza e de ajuda às famílias. O responsável é Ghasson Dar-wich, 45 anos, porta-voz do Hezbollah em Dahiyeh. O seu boné diz que «a vitória de Deus chegou». Uma frase de propaganda já espalhada em outdoors por toda a cidade e que esconde um trocadilho: em árabe, surge escrito «Ja’a Nasr Allah». As duas últimas palavras juntas compõem o nome do líder do Hezbollah, Nasrallah.
É a voz dele que ecoa pelas ruas, tomando conta de todos os auto-rádios da cidade, sob as notas de uma música vitoriosa, cantando o triunfo sobre Israel. E é a ele que as mulheres xiitas agradecem, gritando com os olhos postos no céu, sempre que um membro do movimento entrega uma indemnização: 12 mil dólares pelas casas arrasadas, 8 a 10 mil pelas parcialmente destruídas. Nasrallah prometeu pagar casas a 15 mil famílias e suportar a renda, durante um ano, de todos os que necessitarem de abrigo, ainda as bombas voavam sobre o Líbano.
A promessa começou a ser cumprida a 17 de Agosto com pagamentos feitos em dinheiro. Do governo, ninguém tem notícias.
Só no domingo, 20, chegaram os primeiros caterpillars do Estado aos bairros, mas a sua coordenação foi também entregue aos xiitas.
Os irmãos Jihad e Safi Dia esperam receber um pouco mais do que as famílias pela sua fábrica arrasada pelos aviões israelitas, da qual não conseguiram recuperar uma única máquina. «Nenhuma seguradora no Líbano aceita fazer seguros de guerra… Já apresentámos o nosso caso ao Hezbollah, vamos ver se nos podem ajudar», explica Jihad, cujo nome significa «guerra santa». Revoltados com a situação, insistem que não havia razão para suspeitarem da sua empresa, que dava trabalho a 60 pessoas e fazia «fatos lindos». À primeira vista, o único pecado da fábrica Trussadia parece ser mesmo apenas a «inspiração» numa conhecida marca italiana…
Será também preciso bastante dinheiro para reerguer o edifício da televisão do Hez-bollah, a Al-Manar, que começou por ser bombardeada a 13 de Julho e, até ao cessar-fogo, foi atingida cinco vezes. As antenas que possuía espalhadas pelo país foram quase todas destruídas. Apesar de o edifício, «com cinco andares à superfície e sete inferiores» ter ficado arrasado, um trabalhador da televisão jura que «a Al-Manar só interrompeu a emissão durante dois minutos ». Nos últimos dias do conflito, diz–se, emitiam a partir de uma antena de um carro. E, na última semana, instalaram um estúdio móvel em cima dos escombros do seu edifício, de onde transmitem vários programas em directo.
AS MIL VIDAS DE BEIRUTE
Os apresentadores da Al-Manar falam quase todos por parábolas, tal como o sheik Mohamad Hussein Ayad, 47 anos, que viu a sua casa destruída, enquanto rezava na mesquita. «A missão dos homens religiosos, durante a guerra, é divina», explica, enquanto desliga uma chamada do seu telemóvel de última geração. Agora que a guerra acabou, as suas preocupações são mais terrenas: quer recuperar um manuscrito do seu 9º andar em escombros. «Estava pronto a ser publicado. faltava apenas dividir em capítulos», revela. Ter perdido o apartamento não o preocupa: nascido e formado em Najaf, no Iraque, já passou pela experiência em 2003, quando as tropas americanas invadiram o país. «Já estou à procura de outra.» A maioria dos libaneses de Dahiyeh está a fazer o mesmo. Mas os preços triplicaram e nem todos vão encontrar casa no bairro. Certo é que todos tentarão ficar, recusando a ideia de mudar para a zona nobre de Beirute mesmo que para casas mais luxuosas e baratas. É quase uma questão de orgulho, uma demonstração de resistência perante o mundo. «Esta é a nossa Beirute e vamos reerguê-la! Enquanto Nasrallah nos guiar, ficaremos!», diz Fatmeh Abou Turk, 40 anos, acrescentando uns impropérios sobre a comunidade internacional, «que nunca condena Israel». Enquanto os filhos recolhem os últimos haveres de uma casa à beira do colapso, repete as frases que o movimento xiita tanto propagandeia mas em que todos os libaneses parecem acreditar, sorrindo aos estrangeiro com os dedos erguidos, formando o «V» de vitória: «Israel perdeu esta guerra e sem aviões não conseguiria nada. Foi uma grande alegria para o Líbano esta vitória do Hezbollah!» «Voltem daqui a um ano e vão ver como estará Beirute», diz o jovem Ahmad Messelmani, enquanto volta a colocar uma máscara no rosto e agarra na pá, para continuar a carregar escombros e lixo para fora do bairro. Com o frenesim das máquinas que já se vêem nos bairros e ao ritmo a que os voluntários estão a trabalhar, talvez seja mesmo assim: talvez Beirute possa, como acreditam os drusos, renascer uma e outra vez.
Esquadra humanitária
Três dias depois do acordo de cessar-fogo, um C-130 da Força Aérea Portuguesa aterrou nos 2 km de pista que restam, no aeroporto de Beirute, transportando material de ajuda humanitária, a pedido das Nações Unidas. Ao todo, a Esquadra 501, comandada pelo tenente-coronel Azevedo Santos e composta pelo capitão João Meira, tenente Manuel Bravo, os 1.ºs sargentos Francisco Correia, Orlando Barreto, José Silva, Ricardo Cruz, José Fernandes e o 2.º sargento Luís Cachulo, realizou três voos para o Líbano. Como explicou Henning Wilgaard, 61 anos, responsável da ACNUR em Amã, a prioridade era «fazer chegar rapidamente cobertores, tendas, coberturas plásticas e medicamentos a quem deles mais necessita». A missão, que obrigava a carregamentos na Jordânia, pernoitas no Chipre e autorizações especiais de sobrevoo de Israel e da Síria, foi confiada aos belgas e aos portugueses. O comandante dos «bisontes», que já cumpriram missões semelhantes no Kosovo, na Bósnia, no Congo e no Afeganistão, era um homem satisfeito, no regresso a casa: «É para nós um grande orgulho ajudar os mais necessitados, em nome de Portugal.»