Foi assim que ele decidiu enfrentar a eternidade: sentado, hirto, num discreto cadeirão como quem tem apenas alguns minutos para dispensar, braços cruzados, expressão sisuda (talvez impaciente?), decorada por bigode impecável, algumas rugas à espreita nos olhos atentos, a cabeça calva e redonda como um ovo. A escritora britânica Agatha Christie poderia ter-se inspirado nas características físicas dele, quando criou a sua personagem literária mais famosa, Hercule Poirot. Mas ao contrário do genial detetive, Calouste Gulbenkian estava longe de ser vaidoso, defende Jonathan Conlin: o único retrato que alguma vez encomendou de si próprio foi o acima descrito, pintado pelo artista Charles Joseph Watelet em 1912 (e que está na capa desta edição da VISÃO). Uma escolha parcimoniosa, dado que Gulbenkian estava a dar então os passos que o transformariam no Senhor cinco por cento – assim chamado pela percentagem dos seus lucros na exploração petrolífera do Médio Oriente – e à data da sua morte, em 1955, com 86 anos, no homem mais rico do mundo.
“A história da vida de Calouste Gulbenkian é muitas coisas, mas não uma história de alguém que construiu fortuna do nada”, adverte Jonathan Conlin logo às primeiras linhas de O Homem Mais Rico do Mundo (Objectiva, 496 págs.), a biografia agora lançada, que ilumina e desconstrói muitos mitos consensuais, tanto em torno do magnata britânico-arménio como do generoso gesto que o levou a deixar legado e fortuna a Portugal, hoje traduzidos na fundação e no museu com o seu nome. Um desses mitos é a ideia de que Calouste Gulbenkian foi um self-made man, à maneira dos grandes empreendedores norte-americanos que subiram a pulso, entre crude e lágrimas. Nascido em Constantinopla, hoje Istambul, o mais velho de três irmãos pertencia por direito à elite mercantil arménia, os amiras: cerca de 165 famílias poderosas, acima das centenas de milhares de arménios otomanos que, refere o biógrafo, “não obstante toda a sua riqueza, os modos alla franga (de estilo francês) e o trajar ingilizhârî (de estilo inglês), continuavam a ser tratados como cidadãos de segunda classe”. Comerciantes e cambistas, os Gulbenkian exportavam algodão em bruto, lã, pelo de angorá e ópio do Império Otomano, e importavam tecidos de Manchester, artigos de vidro de França e querosene de Baku. “Para o pequeno Calouste, viajar entre a Europa e a Ásia teria sido rotina, pois a família estava instalada de ambos os lados do Bósforo”, lê-se. E na mansão asiática de Kadiköy, os empregados abundavam. Uma anedota recorrente na família, usada quando “alguém perdia o sentido de perspetiva”, é a que relata um bizarro episódio: quando o pai de Calouste bateu palmas para o seu criado lhe levar café e este falhou a comparência, porque adormecera no posto, Sarkis ordenou aos outros serviçais que o castigassem. O infeliz morreu devido à severidade dos castigos, inspirando esta tirada ao patriarca: “Disse-vos que o sovassem, não que o matassem.” Esta espécie de pai tirano deixaria a Calouste, como herança dos seus negócios, um valor equivalente a 80 milhões de libras.