A vida de Marina Udgodskaya, de 35 anos, ficou virada do avesso depois de o patrão lhe pedir um favor, que ela interpretou como uma ordem. Obediente, a empregada das limpezas na Câmara Municipal de Povalikhino, uma cidade com apenas 242 habitantes, a 400 quilómetros de Moscovo, aceitou que o seu nome aparecesse nos boletins de voto das últimas eleições locais. E foi assim que, a 13 de setembro, Marina se tornou a única candidata contra Nikolai Loktev, o presidente da autarquia. Só que o resultado não correspondeu aos planos do ex-polícia que se apresentava a escrutínio pelo maior partido do país, a Rússia Unida, formação que há duas décadas controla a Duma, o Parlamento nacional. A diligente funcionária que nunca pensou ter uma carreira política alcançou 62% dos votos dos seus vizinhos. A história acabou por ser noticiada um pouco por todo o lado, da BBC ao New York Times, como que a dar razão a Winston Churchill, o antigo primeiro-ministro britânico, que costumava dizer que a Rússia “é uma charada envolta em mistério, dentro de um enigma”.
Curiosamente, o feito de Marina Udgodskaya não lhe permitiu conquistar o título de “heroína russa de 2020”, atribuído pelo trissemanário Novaya Gazeta, o jornal conhecido pelas suas investigações e pela sua postura editorial contra o Kremlin. A eleita pela publicação que viu seis dos seus repórteres assassinados nas últimas duas décadas chama-se Yulia Navalnaya. Como o apelido indicia, esta moscovita, de 44 anos, é a mulher de Alexei Navalny, o inimigo de estimação do Presidente Vladimir Putin. Os motivos para atribuir tal galardão a esta licenciada em Relações Internacionais, que chegou a trabalhar como quadro superior de um banco de investimento, devem-se ao incidente que quase lhe roubou o marido. A 20 de agosto do ano passado, quando ele viajava da Sibéria para a capital russa, o avião comercial que o transportava teve de fazer uma aterragem de emergência, porque o ativista anticorrupção parecia estar em paragem cardiorrespiratória. Avisada de imediato da gravidade da situação, Yulia saiu disparada do seu T2 rumo a Omsk, num voo de quase quatro horas e na expectativa de ainda encontrar Alexei com vida. Ao chegar ao hospital siberiano e ao falar com os médicos locais, percebeu que tinha de fazer algo radical. Ligou para os seus contactos mais influentes, alguns no estrangeiro, e decidiu também fazer um apelo dramático ao Chefe de Estado para que Putin lhe permitisse levar o pai dos seus dois filhos para o estrangeiro. O Kremlin anuiu e, 48 horas depois, já Yulia acompanhava o marido em coma num jato medicalizado, com destino a uma clínica de Berlim. A primeira fase da operação de salvamento, financiada por Boris Zimin, herdeiro de uma colossal fortuna feita à custa das telecomunicações (a sua VimpelCom foi a primeira firma russa a ser cotada na Bolsa de Nova Iorque), estava concluída. A seguir viria a parte mais complicada, recuperar a personagem que Yulia conheceu no verão de 1998, quando ambos passavam férias na Turquia. Durante cinco semanas, e denotando um “admirável sangue-frio”, Navalnaya nunca perde a compostura. Quando Alexei recupera a consciência, é ele próprio que a elogia: “Eu dormia e dormia. A Yulia falava comigo, punha música, cantava para mim. Lembro-me das emoções e das sensações. (…) Não entendia o que se passava. Não conseguia falar. (…) O amor cura e pode devolver-nos a vida. Yulia, tu salvaste-me!”.