Filho da geração dos «sobreviventes », passou a infância numa Jerusalém onde as pessoas acordavam aos gritos por causa dos pesadelos, e os adultos calavam as memórias indizíveis quando as crianças entravam na sala. Adulto, David Grossman lá permanece, crítico das políticas israelitas face ao povo palestiniano. Em Portugal, dois romances seus bastaram para acompanhar Amos Oz no Olimpo da literatura israelita contemporânea por nós conhecida: Até ao Fim da Terra (Dom Quixote, 2012), extraordinária viagem de uma mãe inesquecível, que é também catarse biográfica e peregrinação pela história do país, em que Ora sai de casa, empurrada pela fé de que, assim, não chegarão más notícias sobre o filho, Ofer, voluntário numa missão militar nos territórios palestinianos ocupados, no mesmo Corpo de Blindados em que estava integrado Uri Grossman (o filho mais novo de David que, em 2006, aos vinte anos, morreu atingido por um míssil, poucos dias depois do pai ter feito um apelo público ao fim da guerra). E Ver: Amor (Companhia das Letras, 2006; Dom Quixote, 2014), prodigioso patchwork, comparado a obras-primas como O Som e A Fúria, de William Faulkner, onde cabem a infância de um rapazinho na década de 50, a biografia reinventada do escritor Bruno Shulz (morto por um soldado nazi, em 1942, num gueto), e uma espécie de enciclopédia existencial, borgesiana, que evidencia o formidável poder da literatura. O peso da história e da História não vergou o escritor, que mantém a voz serena. Um dia, o nome dele será, talvez, o de um Nobel da literatura.
Ver: Amor (1986) começa com a história de Momik, uma criança de nove anos. Escolheu-o como forma de sentir-se mais próximo da sua própria infância?
Na maioria dos meus romances, há uma criança ativa. E nesta história, eu precisava de um personagem assim. Escrevi a parte sobre Momik já depois de ter as restantes três partes feitas, mas tive de a colocar no início do livro. Porque senti que ao tentarmos abordar a Shoa [o Holocausto], não importa quantos livros lemos ou quanta pesquisa fizemos, ou quão familiarizados estamos com os factos: somos sempre crianças.
Enfrentamos esta atrocidade da Shoa com olhos que não conseguem compreender até ao fim: permanece o mistério de como algo assim pôde acontecer. Momik tem, como dizemos em iídiche, uma «cabeça velha».
Quanto mais existe algo que é silenciado, quanto mais os outros o protegem, mais ele sente o desejo de saber: ele não pode viver sem fazer perguntas e sem obter respostas. E a sua pergunta é o que era a Besta nazi de que ele ouve todos os adultos à sua volta falarem.
Ele imagina-a, primeiro, como um animal imaginário ou um «dinossauro gigante que existira no passado», e depois como um animal verdadeiro…
Sim, como todas as crianças fazem, imaginando coisas simultaneamente fantasiosas e concretas. Momik começa a colecionar todo o tipo de animais na cave de maneira a encontrar a besta dentro deles. Porque lhe foi dito por Bela, a proprietária da mercearia, que, se se tiver a alimentação e os cuidados certos, a Besta pode sair de dentro de qualquer criatura. Ela di-lo ironicamente, mas Momik leva-a a sério. E começa a investigar os animais: pombos, gatos, ouriços…
Este livro tem uma estrutura complexa.
Começar com Momik é seguir uma regra básico de contar histórias: «Era uma vez um rapazinho…»?
Este livro desobedece a muitas regras de como a literatura deve ser escrita, desde o fluxo de consciência na parte sobre Bruno [Schulz] até à narrativa enciclopédica no fim.
Momik é sobretudo um narrador importante: pertence à segunda geração, é um filho de sobreviventes.
Mas, tal como essa primeira geração, também ele foi afetado tragicamen te pela Shoa. Como não o ser? Eu nasci em 1954, nove anos depois da Shoa. Os meus pais não são sobreviventes: a minha mãe nasceu na Palestina, o meu pai nasceu em 1936, veio da Polónia para Israel.
E, no entanto, a presença da Shoa era tão forte na nossa vida.
Como é que se fazia sentir?
Todos os dias, às 13h20, quando eu e o meu irmão vínhamos da escola e a nossa mãe nos dava sopa de galinha, ouvíamos a rádio, com uma voz feminina sombria e ritmada a anunciar o programa de procura de parentes perdidos. Durante dez minutos, tínhamos que estar em silêncio absoluto. Não sabíamos do que ela falava: lia nomes e duas ou três pequenas frases biográficas sobre uma pessoa que era procurada pelos pais, ou por filhos. «Rachel, filha de Perla e Abraham Seligson de Przemysl, procura a sua irmã Leah’leh, que vivia em Varsóvia» ou «Sarah Golden procura o pai que viu pela última vez no transporte para Treblinka». Havia um lamento nesse anúncio. E nós sentíamos que havia algo que não queríamos saber; ou que outros evitavam que tivéssemos o peso desse conhecimento. A nossa geração perdeu não propriamente o apetite, por causa disto suceder à hora do almoço, mas a crença no bem da Humanidade. E perdemos a fé de que os pais podiam proteger-nos das catástrofes. À medida que cresci, percebi que também havia outros fenómenos, como o de quem comete o derradeiro ato de graça e empatia: colocar-se a si e à sua família em risco ao abrigar e proteger judeus. Há uma frase na Bíblia que diz: «O coração do ser humano é mau desde a sua juventude, quase desde o berço.» Mas o oposto também é verdade: o coração do ser humano é bom quase desde o seu nascimento. É tudo uma questão das condições que permitem uma ou outra opção florescer. Como vivi toda a minha vida numa realidade violenta, assustadora, vejo como cada vez mais gente está a perder a capacidade de empatia para com os outros. E essa é uma das maiores crises que enfrentamos na guerra de que fazemos parte, no Médio Oriente.
O escritor Anthony Doerr, vencedor do Pulitzer 2014, defendeu, a propósito da apatia dos alemães durante o nazismo, que, quando as pessoas estão embebidas numa situação, veem-na como «a» realidade. Concorda?
Sim. As pessoas habituam-se a uma situação distorcida, e rapidamente aprendem a funcionar com ela e até a inventar ideologias que a justifiquem.
Mas esta é também uma questão moral: o comportarmo-nos de forma terrível «porque tem de ser», «porque somos escolhidos», «porque é o nosso dever histórico ». Temos de ver a nossa história de outros pontos de vista e com ceticismo é uma regra fundamental de sobrevivência. Porque, por vezes, contamos uma história a nós próprios, indivíduos ou povos, que não aconteceu e ficamos aprisionados nessa mitologia nacional, repetindo histórias de sacrifício e heroísmo.
Esse movimento de Sísifo aplica-se a Israel?
Sim. Nós estamos profundamente aprisionados na história da eterna vítima e formulamos a nossa identidade de acordo com essa visão.
O problema destes mitos coletivos é que têm pedaços verdadeiros: nós, os judeus, somos diferentes.
Fomos vítimas ao longo da História.
Mas talvez possamos libertar-nos dessa ideia, agora que temos o exército mais forte da região e o apoio de todas as superpotências: EUA, Alemanha, França, Inglaterra…
Talvez devêssemos gerar uma nova realidade. Não há espaço para jogar as mesmas cartas no Médio Oriente, já não se trata da velha história dos árabes contra os judeus: hoje, é árabes contra árabes, xiitas extremistas contra xiitas moderados, xiitas contra sunitas… Este é o tempo exato para os líderes corajosos e inovadores atuarem de forma diferente em Israel, para fazerem todo o tipo de acordos e alianças: com o Kuwait, com a Arábia Saudita, com a Jordânia, com o Egito, que têm todo o interesse em lutar contra o islamismo radical e os xiitas.
E estes países querem iniciar contactos connosco mesmo que não gostem de nós.
Muitos até gostariam que Israel se fosse embora. Não embelezo a questão. Mas a política trata de interesses conjuntos. E, se pararmos de ser vítimas da situação, este é o momento de mudar. Mas como é que deixamos de ser vítimas se isso está tão interiorizado dentro de nós?
Em março, uma citação sua fez manchetes: «Netanyahu tem razão sobre o Irão, temos que o escutar.» Essa não é a velha visão do medo que sempre combateu?
Às vezes, o mais corajoso é dizer o oposto do que é a nossa imagem. Sobre um país como o Irão, cujos líderes declaram abertamente que querem erradicar Israel, onde existem armas nucleares que dizem poder ser dirigidas contra Israel, e onde há quem publique panfletos com «nove boas razões para exterminar Israel», eu não posso dizer: «Olhem, todos os receios de Netanyahu são imaginários.» Às vezes, até um paranoico tem inimigos verdadeiros.
Se quiser ser honesto comigo próprio, e ignorar o que os jornais possam dizer sobre mim, tenho de afirmar que há um risco que não podemos correr: esperar que talvez os iranianos mudem a sua atitude e deixarmos de os monitorizar. Não se trata da minha agenda pessoal, é uma agenda internacional.
E como observa o facto de um velho aliado como os EUA estar, aparentemente, a recuar no apoio a Israel?
Trata-se de um choque pessoal entre Netanyahu e Obama. A ligação entre os EUA e Israel é muito forte.
O problema é que a paciência de muitos norte-americanos esgotouse ao verem que Israel não está a fazer nada para acabar com a ocupação ou para atingir a paz. É difícil de acreditar, mas cum -se este mês 48 anos de ocupação do território de outro povo. Há um paradoxo imenso nesta afirmação, porque em Israel somos uma democracia: qualquer árabe pode ser eleito para primeiro-ministro, o terceiro maior partido é composto por israelo-palestinianos, há liberdade de expressão, há liberdade de imprensa, enquanto que, nos territórios ocupados, há quase um «apartheid». Quanto tempo poderá a situação prolongar-se? Não sei. Mas nos últimos seis anos não houve um único progresso, e milhares de casas foram construídas em novos colonatos. Porque é que os palestinianos estão bloqueados? Porque é que desafiam Netanyahu? Porque é que não vão tomar parte nas conversações sem pré-condições? Querem esperar mais 50 anos? Eles têm princípios, muito nobres, mas nós queremos ter paz.
O que crê que vai acontecer nos próximos tempos?
A situação vai piorar cada vez mais.
Os palestinianos vão ficar cada vez mais frustrados, desesperançados.
E os israelitas vão ficar mais aterrorizados com este desenvolvimento dos palestinianos. Vai haver cada vez mais episódios de violência entre nós e o Hamas, nós e a Cisjordânia, a insegurança vai conduzir mais pessoas para o nacionalismo e para o fundamentalismo…
Observa essa realidade não através dos jornais mas nas ruas perto da sua casa. Como é que lida com a tensão?
Escrevendo. Tentando ser politicamente ativo, conversando com as pessoas, indo a reuniões, marcando encontros com qualquer líder que vá ao país e que possa ter influência no Governo de Israel. Tento não desesperar. Não posso permitir-me o luxo do desespe
O desespero não é, muitas vezes, uma força decisiva?
É uma boa questão. Mas o que vejo, tanto em Israel como na Palestina, são pessoas desesperadas mas apáticas.
Se houver um primeiro passo no processo de paz, isso criará imediatamente todo o tipo de ligações e parcerias entre indivíduos, entre empresas, universidades, orquestras, clubes de futebol… Começarão por amizades, coisas pequenas, mas começaremos a ter agentes de paz.
Agora, apenas temos agentes de ódio. Há poucos a acreditarem num qualquer bom desenvolvimento, mas tanto da nossa vida atual resulta de impossibilidades: o desmantelamento da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a eleição de Obama para a Casa Branca…
Os milagres acontecem.
Disse, em entrevista. «os milagres podem acontecer na escrita, infelizmente com mais frequência do que na vida.» E afinal é na vida real que estão a acontecer?
Sim. Mas toda a ideia do Estado de Israel é um milagre. Nem por um minuto me esqueço da alternativa, que seria não termos este país.
Apesar de todas as minhas críticas a Israel, não posso esquecer os nossos feitos contra todas as previsões e nas condições mais difíceis.
O preço não é alto de mais?
O preço é alto, mas não demasiado.
Ter um Estado, um lugar que pode ser a nossa casa, após dois mil anos de exílio, tem imenso significado.
E se conseguirmos reter este gosto de viver realmente a vida, e se conseguirmos libertar-nos, a nós e aos palestinianos, desta situação distorcida, da ocupação, do terror, então quase todo o preço a pagar será o certo.
Sente-se aprisionado por estas duas noções: a de que sempre o lemos através do filtro do conflito israelo-palestiniano, e a de ser alguém definido pelo sofrimento de ter perdido um filho?
Eu não tenho qualquer controlo sobre a forma como me consideram ou me leem. Desisti dessa ilusão há muito tempo. O que sei é que, em muitos romances meus, quis escrever deliberadamente não sobre o que significa ser um israelita, mas sobre o que significa ser um ser humano. Escrevi sobre o casamento, sobre como educar os filhos, inveja, amor, sexo… Todas as coisas primordiais que vêm antes do facto de ser israelita. Mas esse «aprisionamento » também pode ser uma vantagem: a vida lá é tão interessante.
Como é que se mantém a bolha de amor, o continuar a importar-se com as coisas numa realidade que é como um ácido, venenosa e brutal? Como é que se educam crianças a terem ideais humanistas, sabendo que assim não os preparamos para o que os rodeia? Como é que se combate pela individualidade numa situação que, a todo o momento, tenta colar-nos a um coletivo? Sim, sou um escritor israelita, sou um escritor judeu. E sou um pai em sofrimento.
Mas toda a minha escrita é para me redimir do cliché de ser «o» escritor israelita, «o» escritor judeu, «o» pai em sofrimento. Há tantos clichés e slogans a rodearem a condição humana…
A escrita de livros é precisamente o tentar distinguir, encontrar a individualidade.
BI
David Grossman nasceu há 61 anos em Jerusalém, filho de um taxista, mais tarde transformado em livreiro, que lhe transmitiu o amor pelos livros.
Estudou filosofia na Universidade de Jerusalém, cumpriu o serviço militar de 1971 a 1975, e trabalhou como jornalista na rádio nacional durante 25 anos, até ser despedido por se ter recusado a abafar a notícia sobre a criação de um Estado declarado pela Autoridade Palestiniana.
A escrita chegou pouco depois de conhecer a mulher, Michal.
Grossman, traduzido em várias línguas, escreveu romances, poesia, ensaios e livros infantis.
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