A entrevista decorreu na semana passada, no mesmo dia em que, em Bruxelas, os líderes europeus se reuniam numa cimeira extraordinária para tentar evitar o contágio da crise das dívidas soberanas. A coincidência é relevante, na medida em que Boaventura Sousa Santos, 70 anos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, é um académico que não se coíbe de comentar a atualidade mediática. Por isso, no seu último livro, Portugal. Ensaio contra a Autoflagelação (Almedina), propõe, por exemplo, um Governo de coligação PS, PCP e BE. Resumo de uma longa conversa sobre as causas da decadência dos povos ocidentais.
Há uns anos, José Gil disse que tínhamos «medo de existir» e, agora, neste novo livro, o senhor afirma que nos «autoflagelamos». Portugal está no divã?
Há uma razão sociológica para isso acontecer: somos uma sociedade de desenvolvimento intermédio. Temos a vulnerabilidade de não sermos tão desenvolvidos quanto outros países do bloco económico em que estamos inseridos e de, ao mesmo tempo, possuirmos a mesma moeda. Vendemos têxteis e calçado, não
vendemos aviões nem automóveis. Há uma tradição de vulnerabilidade original (como diria Eduardo Lourenço), mas a culpa não é só nossa.
De quem é, então, a culpa?
De todo este bloco económico em que estamos inseridos. A dívida é impagável, não se pode pagar e não se deve pagar. Porque parte dela é produto de uma especulação financeira de que Portugal não tem a culpa.
Porque é que não nos revoltamos, como os gregos?
Acho que não podemos dizer isso. Ninguém podia prever o 25 de Abril, nem os portugueses estavam preparados para uma revolução democrática, nem ninguém pensaria que, se houvesse um golpe, os portugueses viriam para a rua. Não só vieram como celebraram e transformaram o País.
Considera, portanto, que é apenas uma questão de tempo?
Sim. As medidas de austeridade ainda não entraram no bolso dos portugueses, mas, a partir do mês de agosto, as pessoas vão começar a senti-las. São os transportes públicos a aumentar 15%, as quebras de salários, o aumento do desemprego. As pessoas vão deixar de poder cumprir os seus compromissos e vão entregar as casas e os carros comprados a prestações. Provavelmente, daqui a um ano, estaremos na mesma situação que os gregos.
As crises da dívida soberana, a europeia e a norte-americana, estão a pôr em causa o modelo de crescimento ocidental?
Penso que estamos num período de transição paradigmática. O problema é civilizacional, não se resolve numa geração e tem a ver com o tipo de sociedade que hoje temos e que toma, por exemplo, a natureza como um recurso inesgotável. A questão atravessa a Europa, a América do Norte e todos os países desenvolvidos,
pondo em causa este modelo de sociedade capitalista, uma palavra que eu uso mas que de alguma maneira deixou de estar na agenda dos comentadores.
É o próprio capitalismo que, em sua opinião, está em causa?
Temos de começar a pensar num futuro pós-capitalista. E, para nós, na tradição ocidental, esse futuro ou é uma barbárie, pior que o capitalismo, ou é uma «coisa» melhor que o capitalismo. Para aqueles que (como eu) gostariam que fosse melhor que o capitalismo, essa «coisa» é o socialismo do século XXI, completamente
distinto do socialismo do século XX. Será necessário um longo período de transição, 50 ou 100 anos. Entretanto, viveremos neste período de urgência em que tudo parece que vai ser revolvido nesta reunião [cimeira de líderes da União Europeia da passada quinta-feira, 21].
Entretanto, acha que Portugal se «autoflagela»?
Desde a Geração de 70 que temos essa tradição. A nossa decadência sempre foi o leitmotiv do debate intelectual. O que eu digo é que, apesar dessa decadência, Portugal foi avançando, foi-se transformando
e, hoje, é um país diferente do que era antes. Penso que as nossas elites, quer à esquerda, quer à direita, têm feito generalizações demasiado negativistas acerca de Portugal. Eu, pelo contrário, como trabalho muito com jovens e com movimentos sociais, ponho-me sempre na pele das pessoas que ouvem, crónicas atrás de crónicas, afirmar que Portugal nunca deu certo, que é uma miséria, que é um povo ignorante, que não se governa, que não sabe governar-se, que é melhor que alguém o venha tutelar. Como já vimos noutros contextos, este tipo de discurso conduz a que as pessoas digam que precisamos de um novo Salazar.
Mas esse é o discurso antissistema e o que faz é igualmente uma proposta antissistema, alternativa ao sistema vigente.
É evidente. Chegou o momento de decidirmos de que lado é que estamos, pode haver uma alternativa autoritária, até nacionalista, e uma alternativa democrática, federalista, europeia.
O seu livro também é nacionalista.
Nacionalista, não. Patriótico, sim. Temos de refletir quando negociamos dependências e quando se diz que o programa da troika não só vai ser cumprido como ainda vamos muito mais além. Este é o programa que a burguesia sempre quis, depois do 25 de Abril.
A saída para a crise da zona euro é uma Europa federal?
Se for construída democraticamente e, para isso, precisamos de refundar a Europa. Porém, estou convencido de que se não houver uma regulação dos mercados financeiros, o euro desaparece e, com ele, desaparece também a Europa tal e qual como a conhecemos. Isto é uma análise sociológica, mas também é uma posição
política. Costumo caracterizar a minha posição de otimismo trágico. Isto significa que estou consciente das dificuldades que atravessamos, embora me recuse a pensar que não temos alternativa.
E qual é a alternativa que vê para a periferia da Europa a que pertencemos?
Definhar?
Não tenho vergonha de o dizer publicamente: podemos ser preguiçosos, podemos não saber como nos governar, mas não matámos 6 milhões de judeus e ciganos. Tenho pena de o dizer, mas tenho de
o dizer. O nacionalismo puxa o nacionalismo. A Europa sempre foi isto. E é disto que tenho medo.
Do ponto de vista do Governo, defende uma coligação de esquerda entre o PS, o PCP e o BE.
Nunca experimentámos uma coligação de esquerda e, nessa medida, penso que é tempo de a tentar.
Que esquerda é essa?
Precisamos de duas mudanças. Por um lado, uma radicalização da democracia. Considero que a democracia representativa não chega, ela é preciosa, mas muito fraca a defender a democracia da promiscuidade
entre os interesses económicos e os interesses políticos. Precisamos, por isso, de uma combinação entre democracia representativa e democracia participativa. Isto é, têm de existir áreas, a nível local, regional e nacional, nas quais os cidadãos não se limitam a eleger os decisores, mas são eles próprios que tomam as decisões por consultas populares, referendos, formas de orçamento participativo como as que existem na América Latina e que eu estudei há já bastante tempo.
E qual é a outra mudança que preconiza?
Caminhar para um horizonte pós-capitalista. Não para um socialismo de Estado como o que tivemos no século XX, mas para a construção de uma sociedade através de modelos de desenvolvimento económico que não se baseiem no crescimento infinito e que, em meu entender, estão a surgir nas periferias das periferias.
Como não me foco no Ocidente, muito menos dentro de Portugal, não posso dizer que não haja alternativas.
O meu próximo livro a ser lançado em português analisa o caso da Bolívia e do Equador, países nos quais estão a surgir outras visões do desenvolvimento. Sabe o que é que está escrito na Constituição da Bolívia e do Equador?
Não faço ideia.
Ficará chocada se eu lhe disser que está lá escrito que «a natureza tem direitos»? Para si e para mim, que somos ocidentais, a natureza é objeto de direito, não um sujeito de direito. Mas o que está na
Constituição do Equador, da qual eu fui um dos consultores, não é o nosso conceito de natureza, é o conceito indígena de «terra-mãe».
Não se importa que lhe chamem utópico?
De maneira nenhuma. O utópico é o espelho das deficiências daqueles que não querem ver as alternativas. Daqueles que não são capazes de pensar para além do que está pensado e, de alguma maneira, dispensar o que está pensado. O meu grande desafio como intelectual é pensar o que não está pensado.
Porque é que escreveu este livro?
Desde 2000 que, através do Fórum Social Mundial, tenho estado muito envolvido nos problemas que estão a emergir em África, na Ásia e na América Latina. De repente, dou-me conta de que a crise está em minha casa. Julgo que, como sociólogo, tenho obrigação de dizer o que se passa no meu país. Isolei-me e, durante três semanas, escrevi o livro para se saber o que estou a pensar. Nunca de uma maneira neutra. Procuro ser
objetivo, utilizo as metodologias que a Sociologia põe ao meu dispor, mas não sou neutro. Eu quero saber de que lado estou. E se há opressão, eu estou do lado dos oprimidos. Se há mulheres discriminadas, eu estou do lado das mulheres discriminadas. Se há índios vítimas de racismo, eu estou do lado deles.
Por isso o acusam de ser parcial.
A maior parcialidade é a daqueles que dizem ser imparciais. Acha que os conservadores são imparciais? Eles só veem a realidade que existe. Isso é um discurso político como, aliás, este livro também é. É um livro de intervenção política.
E um investigador deve fazer intervenção política?
Absolutamente. Não posso despir-me da minha qualidade de ser humano, de ser português, de ser europeu, à porta do gabinete. Como se eu fosse um cientista social que vem de Marte? Quem pensa que o pode fazer ou é estulto ou é ignorante.