Não se escolhe o sítio onde se nasce. Mas Salgueiro Maia decidiu, pelo próprio punho, que seria o mesmo onde passaria à eternidade. Em testamento lavrado três anos antes da morte, ocorrida a 3 de abril de 1992, aos 47 anos, o oficial de Cavalaria determinou que o seu corpo fosse agasalhado no “caixão mais barato do mercado”, transportado “pelo meio mais económico, de preferência em viatura militar”, e enterrado em campa rasa, sem honras de Estado e ao som de Grândola, de Zeca Afonso, e da marcha do Movimento das Forças Armadas (MFA) – uma versão da peça A Life on the Ocean Wave, de Henry Russell.
Pediu também, e somente, a presença de amigos na cerimónia, na vila raiana de Castelo de Vide, distrito de Portalegre. Porém, “foi com natural hipocrisia e cinismo que aqueles que marginalizaram Salgueiro Maia, o perseguiram e o maltrataram em vida, correram ao seu funeral a prestar-lhe as homenagens póstumas e lágrimas de crocodilo”, notou Vasco Lourenço, camarada das conspirações que levaram ao derrube da ditadura.
Apesar das influências, por certos nobres, no sentido de trasladá-lo para o Panteão Nacional, a sua vontade não foi contrariada e o assunto adormeceu. O “Capitão de Abril”, tenente-coronel à despedida, repousa, pois, no talhão do cemitério da localidade alentejana, entre combatentes das ex-colónias, soldados falecidos na Bósnia ou bombeiros consumidos pelas chamas. “Não queria honrarias”, lembra o coronel Carlos Matos Gomes, amigo desde as cadeiras do colégio de Tomar, onde Maia interpelava os docentes e questionava as suas afirmações. “Sempre utilizou o humor para fazer a crítica aos cerimoniais de aparato e hipocrisia. Queria que dele ficasse a memória de defensor da liberdade e de lutador por uma sociedade mais justa. Amava o povo a que pertencia e, após a morte, quis estar ao lado dos seus iguais.” Ali, ele é apenas mais um, ainda que a pedra tumular, de costas para a serra de São Mamede, releve as suas facetas de “conquistador do sonho inconquistado” e de “herói que não se integra”.
18 anos depois…
Nestas ruas de reminiscências medievais e da diáspora judaica fez-se ouvir, em tempos, o ribombar do tambor da criança nascida numa família de ferroviários. Nas artérias do casario em cascata ressoa agora a memória, a céu aberto, do seu exemplo e feitos. Salgueiro Maia dá nome a um largo central e a instalações artísticas em bronze. O seu rosto icónico não foi sequer apagado da casa onde nasceu, na Rua de Santo Amaro, reabilitada por particulares. Na Praça 25 de Abril, temos o busto e um exemplar da mesma chaimite que o guiou rumo à liberdade. Em 1994, por iniciativa do PS, o seu caráter e firmeza inspiraram o prisma, em mármore branco, da artista Clara Menéres, que se destaca da muralha. A escultura, “intrusão” criativa na fortaleza militar, pesada e velha de séculos, dá corda a outras leituras.
Subir ao castelo para cumprir a segunda parte do testamento – a criação de um museu para o espólio – é que demorou tanto como a qualquer cidadão conquistar o direito de voto. “Andei 18 anos com o Salgueiro Maia às costas!”, ironiza o historiador e presidente da câmara, António Pita. Da primeira reunião com o ministro Pedro Roseta (2003) à inauguração da Casa da Cidadania, em julho passado, perdeu a conta aos muitos passos perdidos, insistências e desabafos feitos a cada nova legislatura. Tudo porque o autarca do PSD recusou reduzir o militar de Abril à visão paroquial ou confinar a memória a um museu de província. “Era imperativo de consciência dar dimensão nacional a Salgueiro Maia. É também uma forma de nos redimirmos enquanto País”, esclarece.
O antigo secretário de Estado, Jorge Barreto Xavier, deu o empurrão, a diretora regional da Cultura, Ana Amendoeira, manteve a pressão, e o ministro Pedro Marques permitiu concretizar o sonho, graças a fundos comunitários e 600 mil euros saídos dos cofres do município. “Pesam no orçamento, mas era agora ou nunca”, justifica o autarca. “Convivo mal com a apropriação ideológica do 25 de Abril. A minha família política também deve assumir a sua quota-parte na celebração e perpetuação dos valores da democracia e do pluralismo.”
A Casa da Cidadania Salgueiro Maia, edifício reabilitado no topo da muralha, já atraiu, desde a inauguração, quase 12 mil visitantes, boa parte deles oriundos de Espanha, França, Brasil, Holanda e Inglaterra. Há dias, passou por lá a embaixadora Vivia Chang, representante de Taiwan em Portugal. “No auditório passamos todos os dias o documentário Rumo à Eternidade, do Francisco Manso, e até estrangeiros saem a chorar”, garante Paulo Morais, o arqueólogo de formação que guiou a VISÃO pelo espaço. Nas paredes brancas, ganham renovada vida frases do “Capitão de Abril”, a verde e vermelho. “Há alturas em que é preciso desobedecer”, lê-se numa delas.
O espólio cedido pela família contempla mais de 900 peças e objetos: fotografias, fardas, miniaturas de carros de combate, armas, crachás, condecorações, insígnias, autocolantes, cartazes e até o megafone que Salgueiro Maia usou para montar o cerco ao regime no Largo do Carmo e exigir a rendição de Marcelo Caetano. Apenas uma pequena parte está exposta nas vitrinas, cuja sequência é intercalada por palavras luminosas projetadas em fundo – Igualdade, Mudança, entre outras – e um vídeo sobre o Dia da Liberdade condensado em três minutos. “Nas visitas escolares percebe-se que, para os miúdos, o 25 de Abril é pouco mais do que um feriado, a maioria desconhece Salgueiro Maia. Mas depois ouvem a história e entusiasmam-se”, refere Paulo Morais. “Já os espanhóis vivem isto à flor da pele, emocionam-se. Por vezes, sente-se que valorizam mais a data do que alguns portugueses.”
Ainda este ano, a totalidade das armas será visitável no antigo paiol do castelo. Depois haverá um Centro Documental e de Reservas para conservação, depósito e divulgação da coleção de Salgueiro Maia, bem como do vasto acervo documental e bibliográfico referente ao 25 de Abril, à guerra colonial e ao próprio percurso do militar. Castelo de Vide não se limita, no entanto, a dar um descanso de ouro ao humilde “guerreiro” da revolução. Reabilita-o e aproxima-se, à sua escala, da versão por ele sonhada para o País libertado: em 2021, o município subiu ao 1º lugar no índice de qualidade de vida elaborado anualmente pela Marktest.
MDLP quis recrutá-lo
O MDLP, movimento liderado pelo antigo Presidente da República Spínola e identificado com a chamada rede bombista de extrema-direita, quis recrutar Salgueiro Maia após o 25 de Novembro de 1975. “O nosso general conta consigo”, escreveu-lhe Maurício Saraiva quatro dias depois, a partir de Madrid, base clandestina do movimento. Este coronel liderara na Guiné o grupo de comandos intitulado Fantasmas e conhecera o jovem Maia em Moçambique, quando aquele fez parte da 9ª companhia de comandos na ex-colónia. A carta integra parte do espólio do “Capitão de Abril” depositado no Centro de Documentação do 25 de Abril, em Coimbra. Nela, Maurício Saraiva desafia Maia, através de um emissário, para um encontro em Espanha, a pedido de Spínola. “Suponho que a EPC [Escola Prática de Cavalaria de Santarém] tem grandes responsabilidades futuras próximas no assunto português”, desafia o autor da missiva.
Insatisfeito com o “25 de Novembro”, o MDLP, responsável por dezenas de atentados bombistas, queria ilegalizar o PCP. Maia, porém, sempre rejeitou e combateu extremismos de esquerda e de direita e desprezava os chamados “spinolistas”, apesar de respeitar o passado militar do general. “Como político, considero que é a coisa pior que conheci até agora”, admitiu, no entanto, ao Século Ilustrado, em 1975. Como se depreende, o “convite” morreu à nascença.